REMEMORANDO CLÁSSICOS: LEONE, MORRICONE, "IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO"

No Brasil, Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo ― co-produção de 1966 entre Itália, Espanha e República Federal da Alemanha ―, foi batizado como Três homens em conflito. É o terceiro e definitivo opus da “trilogia dos dólares” ou da parceria que reuniu o diretor Sergio Leone, o ator Clint Eastwood e o compositor Ennio Morricone. Os títulos anteriores são Por um punhado de dólares (Per un pugno de dollari, 1964) e Por uns dólares mais (Per qualche dollaro in più, 1965).


Sergio Leone


Fui apresentado a essa tríade de Leone em Viçosa/MG, no Cine Odeon, no finalzinho dos anos 60. Antes, dentre os filmes do diretor, conhecia apenas O Colosso de Rodes (Il Colosso di Rodi, 1961), aventura pseudo histórica ambientada na Grécia antiga, que, por linhas tortas, tornou-se espécie de precursora das epopeias cinematográficas protagonizadas por atores musculosos vivendo personagens mitológicos: Hércules, Maciste, Golias, Sansão e Ulisses. Esse quinteto, para meu desespero, ocupou por muito tempo as telas dos cinemas ao longo dos anos 60, enchendo de tristeza e pobreza minha trajetória de cinéfilo. Por causa disso, demorei a reconhecer em Sergio Leone um cineasta de respeito. Na falta de opção assistia aos seus faroestes. Mas tratava-os com o mais cruel desprezo. Nem me referia a eles pelo termo que prefiro: westerns. Eram, aos meus olhos inconformados, pura e simplesmente “espaguetes” da pior qualidade. No gênero, tinha olhos apenas para os americanos, John Ford à frente, Howard Hawks um pouco atrás, e, a seguir, King Vidor, Raoul Walsh, Anthony Mann, John Sturges, Robert Aldrich e Henry Hathaway.


Clint Eastwood


Demorei a remover dos olhos a venda infantil de espectador sectário. Em momento algum deixei de apreciar os exemplares do classicismo e John Ford ainda é ―pelo visto sempre será ― meu modelo pleno de cineasta. Seu estilo contemplativo e reflexivo é único, assim como sua perfeição na combinação de ambientes e personagens; no olhar generoso que endereça aos derrotados; na capacidade de preencher o vazio com sentimento e humanidade. Mas chegou o dia em que finalmente abri coração e mente para a grandeza de Leone. Tal aconteceu quando fui apresentado, em 1973 ― por insistência de terceiros, diga-se ―, àquele que, para mim, é o seu opus máximo: Era uma vez no Oeste (C’era una volta il West, 1968). Este filme lançou-me num verdadeiro estado de arrebatamento desde a abertura. A narrativa compassada, o tempo sem pressa eternizado pelo enquadramento, os encadeamentos, a valorização do elenco, as faces em primeiro plano ― característica tão fundamental em Leone ―, tudo isso unido a um estilo contemplativo, reflexivo, nostálgico, tão próximo de Ford, com tantas e explícitas citações e referências ao cineasta de minha predileção, não deixavam mais margem de dúvida: Leone é grande! Está muito longe de ser mero vulgarizador da tradição, segundo minha visão obtusa de espectador juvenil. O seu estilo barroco nutria respeito enorme pelo classicismo, como pude recentemente comprovar, ao tomar conhecimento da existência de uma espécie de correspondência entre Leone e Ford, e ao assistir, em DVD, à edição comentada por Sir Christopher Frayling de Era uma vez no Oeste.


Lee Van Cleef


Obrigado a rever Leone sem a viseira do meu radicalismo juvenil, fui redescobrindo não somente o cineasta mas o compositor sempre presente na trilha musical de seus filmes. Ennio Morricone, ao contrário de muitos colegas seus, compõe peças que estão umbilicalmente associadas às tramas que comentam, pontuam e enfatizam. Mesmo assim, possui uma qualidade ímpar: não há problema algum na audição das composições de Morricone apartadas das imagens às quais foram elaboradas. Continuam carregadas de sentido. Parece-me ser extremamente difícil conseguir essa proeza. Afinal, os temas de Morricone não encadeiam apenas acordes. São comentários carregados de metáforas e onomatopeias, de referências sonoras transmudadas em motivos essencialmente visuais. Assim é a trilha de Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo, por muitos considerada a melhor de toda a “trilogia dos dólares” e uma das peças mais plenamente realizadas do compositor. O tema principal parece orquestrar a sonoridade da pradaria, do deserto, do descampado em combinação à frenética movimentação dos personagens ― Blondie (Eastwood), Tuco (Elli Wallach) e Angel Eyes (Lee Van Cleef). Estes parecem coreografados em suas expressões, cavalgadas e manuseio dos revólveres enquanto buscam, em pleno cenário da Guerra de Secessão, a fortuna de dólares escondida em algum cemitério. O mote da composição é o uivar do coiote, traduzido metaforicamente, a princípio mansamente, pelos instrumentos de sopro. A seguir, cordas, sopros e percussão num crescendo combinam-se em uníssono: o uivar calmo da abertura eleva o tom, como que anunciando a disparada do animal numa caçada implacável, na qual bondade, feiura e maldade se misturam na ambição que move os personagens. Não há maniqueísmo no Oeste de Leone.


Eli Wallach


Confira o leitor se há exagero na apreciação, ouvindo a trilha musical de Il Buono, Il Brutto, Il Cattivohttps://www.youtube.com/watch?v=Ux0vyv7dEGk


Ennio Morricone


(José Eugenio Guimarães, 2008)


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