domingo, 23 de julho de 2017

GÊMEAS XIFÓPAGAS BANCAM A ESTREIA DE BRIAN DE PALMA NO CINEMA 'MAINSTREAM'

Brian De Palma, no começo da carreira, ocupou espaços na cena da contracultura. Passou aproximados 12 anos, desde 1960, na realização de satíricas e originais produções baratas, geralmente em média metragem e certeiramente direcionadas ao status quo estadunidense. De início, não conseguiu muita visibilidade, inclusive pela falta de interesse de distribuidores. Ainda assim, por suas mãos obscuras atores como Robert De Niro e Jill Clayburgh estrearam no cinema. A sua sorte muda favoravelmente em 1969. Quem anda cantando nossas mulheres (Greetings, 1968) — também conhecido por Saudações entre os cinéfilos brasileiros — fura o bloqueio do anonimato para ser consagrado no Festival de Berlim com o Urso de Prata e indicação ao Urso de Ouro. A partir daí começa a ser notado com mais atenção por companhias distribuidoras e produtoras. Em 1972 é contratado pela minúscula American International Pictures, associada à Pressman-Williams Enterprises, para dirigir uma barata produção de suspense típica do padrão 'B'. Irmãs diabólicas (Sisters) é um estranho e original drama psicológico e de suspense sobre as trágicas consequências da cirurgia de separação de gêmeas xifópagas já adultas, Danielle e Dominique Blanchion — interpretadas por Margot Kidder. É também o começo declarado do namoro de De Palma com seu principal mestre e fonte permanente de inspiração: Alfred Hitchcock. Percebem-se, no desenvolvimento narrativo de Irmãs diabólicas, claras referências e alusões a, no mínimo, seis títulos do Mestre do Suspense. Segue apreciação escrita em 1997.







Irmãs diabólicas
Sisters

Direção:
Brian De Palma
Produção:
Edward R. Pressman
American International Pictures, Pressman-Williams Enterprises
EUA — 1972
Elenco:
Margot Kidder, Jennifer Salt, Charles Durning, William “Bill” Finley, Lisle Wilson, Barnard Hughes, Mary Davenport, Dolph Sweet e os não creditados Olympia Dukakis, Bobby C. Collins, Cathy Berry, Catherine Gaffigan, Justine Johnston, James Mapes, Bob Melvin, Burt Richards, Sealo.



Bastidores de Um tiro na noite (Blow out, 1981)
O diretor Brian De Palma e John Travolta, intérprete de Jack Terry



Após 12 anos dedicados à contracultura, Brian De Palma adere ao mainstream com Irmãs diabólicas. Visita a velha, boa e rica tradição do “filme B” para contar uma história escabrosa, repleta de imprevistos e improbabilidades. Formalmente, alimenta-se da obra de Alfred Hitchcock. Este é o primeiro filme do cineasta com trama, andamento e humor claramente influenciados pelo realizador de Um corpo que cai (Vertigo, 1958). Contêm referências nítidas e descaradas de Psicose (Psycho, 1960), Janela indiscreta (Rear window, 1954), Disque M para matar (Dial M for murder, 1954), O terceiro tiro (The trouble with Harry, 1956), Festim diabólico (Rope, 1948) e Marnie, confissões de uma ladra (Marnie, 1964). Entretanto — em contrariedade à má vontade de muitas críticas — não plagia o “mestre do suspense”. Irmãs diabólicas é extremamente original. Apenas alude ao cinema hitchcockiano, inclusive na recriação de algumas passagens. Nada copia, em momento algum.


Egressso do média metragem, De Palma passa com brilho pela cena underground. Na oportunidade, satiriza diversos aspectos da vida estadunidense. Estreia em 1960 com os 40 minutos de Icarus. A seguir faz 660124: the story of an IBM Card (1961). Com Wotan’s wake (1962) se torna um dos cineastas com menos de 25 anos a receber incentivo da Rosenthal Foundation[1]. Seguem-se os também pouco conhecidos Jennifer (1964), Bridge that gap (1965), The responsive eye (1966) — documentário sobre as reações do público à Pop Art — e Show me a strong town and I'll show you a strong bank (1966). Passa ao longa metragem em 1968 com Murder à la mode — aclamado por uma minoria e financiado pelo Departamento do Tesouro da Inglaterra em retribuição a serviços prestados. A realização não encontra distribuidor, tal qual Quem anda cantando nossas mulheres (Greetings, 1968) — influenciado por Masculino-feminino (Masculin féminin, 1965), de Jean-Luc Godard —, sátira ao amor livre, ao assassinato de John Kennedy, à Guerra do Vietnã e ao cinema amador. Em 1969, com Cynthia Munroe e Wilford Leach, dirige Festa de casamento (The wedding party) e lança os atores Robert DeNiro e Jill Clayburgh. Também não encontra interessados para lançá-lo comercialmente. Porém, a sorte começa a mudar em 1969. Quem anda cantando nossas mulheres fura o bloqueio ao receber o Urso Prata e indicação ao Urso de Ouro no Festival de Berlim. A partir daí atrai a atenção de distribuidores e consegue boas arrecadações. Graças a esse estímulo, De Palma se organiza para distribuir pessoalmente Festa de casamento. Concretiza Dyonysius in 69 (1969). Olá, mamãe! Hi, mom! (1970) — aclamado como uma das melhores sátiras do período — tem Robert De Niro no papel de um neurótico veterano do Vietnã que encontra distração na realização de filmes pornográficos e no atentado com bombas a unidades residenciais. Orson Welles estrela o também satírico O homem de duas vidas (Get to know your rabbit, 1972), trabalho que encerra a fase alternativa do cineasta.


Irmãs diabólicas prega peças no público. Leva-o ao enganoso mundo das aparências. Na primeira sequência uma jovem cega e branca começa a se despir em um banheiro masculino. É observada por um negro através do orifício da fechadura. A expectativa do público é quebrada com a pergunta de um locutor: “O que ele fará?” O que se vê são imagens de um programa televisivo de auditório concebido segundo o consagrado modelo “câmera indiscreta”. A jovem supostamente cega é Danielle Breton (Kidder), modelo e aspirante a atriz. Seu parceiro é Phillip Wood (Wilson), engenheiro. Pela participação no show ganham, respectivamente, um faqueiro e convites para jantar em restaurante de classe. Na plateia, um indivíduo apreensivo e parcialmente oculto chama a atenção.


Danielle brinca com Phillip sobre o jantar. Comunica, entre sorrisos, que levará as próprias facas. À mesa, sob efeito de álcool, derrama-se em incontinência verbal. O misterioso e tenso espectador seguiu o casal e tomou assento nas proximidades. Num relance, admoesta Danielle com rispidez, por causa do excesso de bebida. Quase provoca briga com Phillip. Felizmente, os ânimos são apaziguados.


Danielle, em seu apartamento, passa a noite com Phillip. Desperta sobressaltada tão logo amanhece. No banheiro, ingere alguns comprimidos e deixa outros sobre a pia. Do nada, responde à voz áspera de outra mulher. O companheiro desperta. Por descuido e sem perceber, atira ao dreno as pílulas deixadas no lavatório enquanto a parceira comunica a chegada da irmã gêmea Dominique, para a celebração de aniversário. Visivelmente transtornada com o sumiço da medicação, provoca a ida de Phillip à farmácia. Ao retornar, encontra-a adormecida. Resolve despertá-la após desembalar o bolo comemorativo que adquiriu. Porém, é esfaqueado diversas vezes por uma furiosa e catatônica Danielle. Gravemente ferido, Phillip encontra forças para se arrastar até a janela. Na vidraça, com o próprio sangue, escreve um grande pedido de “socorro”. Chama a atenção da vizinha, a jornalista freelancer Grace Collier (Salt). A polícia é chamada.


Os últimos momentos do gentil a atencioso Phillip Wood (Lisle Wilson)

Danielle Breton (Margot Kidder) desperta para matar

Feliz aniversário, Danielle Breton (Margot Kidder)

Grace Collier (Jennifer Salt) na "janela indiscreta" e diante do pedido de "socorro" 


Enquanto isso, o sujeito misterioso chega ao apartamento. É Emil Breton (Finley), médico e marido de Danielle. Calmamente ela o informa da presença de Dominique. Antes de sair com a mulher, apaga rapidamente as evidências do assassinato e oculta o cadáver de Phillip no interior de um sofá. Logo chega o detetive Kelly (Sweet). Demonstra evidente má vontade devido às polêmicas reportagens de Grace Collier. Nada encontra, somente o bolo com a inscrição “Feliz aniversário Danielle e Dominique” e a embalagem com o endereço da confeitaria.


Danielle Breton (Margot Kidder) e Emil Breton (William Finley)


Kelly considera falso o alarme e encerra as investigações. A repórter, inconformada, age por conta própria. Vai à confeitaria e levanta informações sobre o bolo. Contrata o investigador particular Joseph Larch (Durning) para procurar pistas na cena do crime. Por pouco não é surpreendido pela chegada de Danielle e Emil, acompanhados de carregadores. Oculto, assiste à retirada do sofá excessivamente pesado. Desconfia de algo oculto em seu interior. Resolve seguir os transportadores. Também encaminha a Grace um dossiê médico achado no apartamento. Ao examiná-lo, a jornalista se vê diante do triste passado de Danielle e Dominique, mais conhecidas pela crônica médica como as xifópagas irmãs Banchion. Descobre, com a ajuda do colega Arthur McLennen (Hughes) a trágica cirurgia de separação a que foram submetidas, há muitos anos, pelo médico Emil Breton. A problemática Dominique faleceu durante a intervenção. Esse dado deixa o espectador desconfiado. Como explicar o diálogo entre as irmãs antes do assassinato de Phillip?


Grace, cada vez mais curiosa, descobre as instalações médicas da malfadada cirurgia e conhece novas verdades sobre Danielle. Devido ao trauma provocado pela morte da irmã, assume a personalidade de Dominique sempre que se relaciona com homens. Ingere medicamentos para conter as reações violentas. A ação descuidada de Phillip, no banheiro, resultou em sua própria morte quando provocou o sumiço dos demais comprimidos. O próprio Emil teme o surgimento do irado fantasma de Dominique. Por isso, evita relações sexuais com a esposa.


Grace Collier (Jennifer Salt) e o detetive particular Joseph Larch (Charles Durning)


Durante a investigação, Grace é surpreendida por Emil e submetida à hipnose para esquecer as descobertas. Como se não bastasse, ainda é usada num experimento para tentar a cura de Danielle, também posta em transe hipnótico e induzida a acreditar que a repórter é a irmã ainda viva. Porém, uma variável não prevista intervém no processo. Danielle rememora os incidentes da cirurgia. Retirada do transe, é imprudentemente abraçada por Emil. O contato físico com o sexo oposto traz de volta, potencializado, o fantasma da falecida. Danielle mata o marido com a mesma faca usada para golpear Phillip. A polícia intervém, representada pelo detetive Kelly. Aprisiona Danielle e atribui crédito às desconfianças de Grace. A repórter foi monitorada secretamente por detetives durante todo o tempo. Infelizmente, é tarde para ajudá-la. Teve as lembranças apagadas. Irmãs diabólicas tem final aberto, bem-humorado e surpreendente: numa distante estação ferroviária do Canadá, o esquecido detetive particular Joseph Larch vigia atentamente um sofá deixado na plataforma.


A narrativa de Irmãs diabólicas é dominada pela agilidade. Tudo acontece com rapidez. Essa característica — somada às doses por vezes involuntárias de humor negro —, oculta aspectos mais frágeis do roteiro e da direção um tanto descuidada. As cenas do banheiro — principalmente quando Phillip provoca a perda da medicação — e da incursão de Larch ao apartamento são dignas de cineasta amador de tão ruins. A sequência do assassinato também é precária, principalmente quando a câmera mostra o rosto possesso de Danielle em caracterização capaz de envergonhar qualquer produção de horror barato. A direção consegue bons resultados ao dividir a tela em duas perspectivas simultâneas. O recurso permite ao público testemunhar a mesma ação a partir de locais diferentes e favorece à câmera suave e inteligente transição, aparentemente sem cortes, de um centro de observação a outro. Assim, o espectador é conduzido do ponto de vista do moribundo Phillip ao olhar da testemunha Grace Collier.


Danielle Breton (Margot Kidder)

  
Apesar de premiada no Festival de Atlanta, a trilha musical de Bernard Herrmann foi empregada indevidamente. O compositor criou temas eficientes, nem um pouco óbvios. Mas a edição de som tomou a decisão de vulgarizá-los com inserções exaustivas, a ponto de irritar os ouvintes.


Concretamente, em quais cenas e sequências Irmãs diabólicas se comunica com Alfred Hitchcock? O assassinato de Phillip a facadas, ao som de um tema estridente, e o domínio de Danielle por Dominique remetem a Psicose. Há referências a Janela indiscreta em todas as cenas com janelas. O corpo escondido homenageia Festim diabólico e a movimentação do sofá alude a O terceiro tiro. O clima de Disque M para matar é recriado nos momentos noturnos da dependência hospitalar. O problema crônico de Danielle com o sexo oposto tem inspiração em Marnie, confissões de uma ladra.


Inteligentemente, Brian De Palma não responde a todas as dúvidas que assaltam o espectador. Emil Breton causou propositalmente a morte de Dominique na mesa de operação? Quis se livrar de um empecilho ao seu romance com Danielle? As lembranças da sobrevivente, em transe, parecem responder afirmativamente a essas questões. Emil seria também parte de gêmeos xifópagos? O que dizer da enorme e estranha cicatriz vermelha estampada na testa, quase sempre coberta pela boina? Seria resultado de uma cirurgia de separação, processo que deixou horrível e enorme marca no corpo de Danielle? Surge aí outra dúvida: onde estavam as mãos de Phillip quando fez amor com Danielle? Não sentiu os vestígios da cirurgia no quadril da companheira, área tão susceptível ao toque?


Margot Kidder como Danielle Breton


Há que se louvar a ousadia de Brian De Palma ao encenar a relação entre uma branca e um negro, algo difícil de se ver no cinema comercial estadunidense, apesar de todos os avanços desde o tardio pioneirismo de Adivinhe quem vem para jantar? (Guess who’s coming to dinner?, 1967) de Stanley Kramer. Mesmo assim, parece que Phillip entrou na história somente para ser assassinado. Teria merecido fim tão doloroso e inglório como castigo pela violação de um tabu?





Roteiro: Brian De Palma, Louisa Rose, com base em história de Brian De Palma. Direção de fotografia (Preto e branco/Movielab Color): Gregory Sandor, Lennart Nilsson (sequência de créditos de abertura). Música: Bernard Herrmann. Desenho de produção: Gary Weist (não creditado). Montagem: Paul Hirsch. Produção associada: Lynn Pressman, Robert Rohdie, Louis A. Stroller. Produção de elenco: Sylvia Fay. Edição de som: John Fox. Gerente de unidade: Jeffrey M. Hayes. Assistente de direção: Alan Hopkins. Eletricista-chefe: William W. Lister. Assistentes de câmera: Rex North, Ed Hershberger (não creditado). Operador de câmera: Bill Godsey. Supervisão de produção: Louis A. Stroller. Maquiagem: Jeanne Richmond (não creditado). Produção executiva: David Sheldon (não creditada). Gravação de som: Russell Arthur. Mixagem de som: Dick Vorisek. Assistente de montagem: Susan Braddon. Edição musical: Robert Hathaway. Músicos (não creditados): Howard Blake, Howard Blake. Documentário: Jay Cocks. Planejamento de créditos: Richard Hess. Assistente de produção: Amy Robinson (não creditado). Tempo de exibição: 93 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1997)



[1] Cf. EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas, 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 1988. p. 145.