domingo, 5 de março de 2017

UM FILME REFERENCIAL, MARCADO PELA PERSEGUIÇÃO MACARTISTA

Antes de tudo há a canção interpretada por Louis Armstrong desde a década de 30. Emprestou o título a um dos mais notórios filmes estadunidenses dos anos 40, quando passou a enriquecer o repertório de Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Sarah Vaughn etc. Trata-se de Corpo e alma (Body and soul, 1947), segundo exercício na direção de Robert Rossen. O promissor cineasta ganhou triste reputação quando delatou 57 supostos simpatizantes e militantes do Partido Comunista ao Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas. Quantidade significativa de membros do elenco e da equipe técnica também foi convocada pelos inquisidores. Ao que se sabe, todos suportaram a pressão para colaborar com as investigações pelo ignominioso mecanismo da delação. A atriz Anne Revere e o roteirista Abraham Polonsky tiveram as carreiras no cinema praticamente abortadas. Os conhecidos ativistas das causas sociais, os atores Canada Lee e John Garfield, não suportaram a pressão e foram fulminados por ataques cardíacos nas respectivas idades de 45 e 39 anos. Corpo e alma é uma das mais realistas peças cinematográficas de seu tempo. É a primeira a desvendar com sobriedade os bastidores tingidos por corrupção e violência de um dos mais valorizados esportes dos EUA: o boxe. Forneceu linha e compasso às principais realizações sobre o tema: Punhos de campeão (The set-up, 1949), de Robert Wise; O invencível (Champion, 1949), de Mark Robson; Marcado pela sarjeta (Somebody up there likes me, 1956), de Robert Wise; A trágica farsa (They harder they fall, 1956), de Mark Robson; Rocky, um lutador (Rocky, 1976), de John G. Avildsen; e, notadamente, O Touro Indomável (Raging Bull, 1980), de Martin Scorsese. A realização acompanha, ao longo de dinâmicos e precisos 104 minutos, a ascensão do moralmente frágil lutador Charley Davis (John Garfield). O sucesso logo chama a atenção de mafiosos que lhe roubam a alma, a carreira e a administração da própria vida. Segue apreciação escrita em 1993.







Corpo e alma
Body and soul

Direção:
Robert Rossen
Produção:
Bob Roberts
Enterprise Productions, United Artists
EUA — 1947
Elenco:
John Garfield, Lilli Palmer, Hazel Brooks, Anne Revere, William Conrad, Joseph Pevney, Lloyd "Goff" Gough, Canada Lee e os não creditados Larry Anzalone, Al Bain, Steve Benton, Eddie Borden, Paul Bradley, James Burke, George M. Carleton, James Carlisle, Wheaton Chambers, Mary Currier, Sayre Dearing, Joe Devlin, Artie Dorrell, Al Eben, Ceferino García, Herschel Graham, Joe Gray, Virginia Gregg, Stuart Hall, John Indrisano, Sheldon Jett, Milton Kibbee, Mike Lally, Glen Lee, Theodore Lorch, Wilbur Mack, George Magrill, Pat McKee, Sid Melton, Harold Miller, Forbes Murray, William H. O'Brien, Charles Perry, Paul Power, Mike Ragan, Bob Reeves, Frank Riggi, Cyril Ring, Shimen Ruskin, Tim Ryan, Art Smith, Larry Steers, Bert Stevens, Dan Tobey, Sid Troy, George Tyne, Sailor Vincent, Peter Virgo, John Wald, Ulysses Williams.



Uma carreira marcada pela delação: o diretor Robert Rossen




O atualmente esquecido Corpo e alma está entre os mais notórios títulos da produção cinematográfica estadunidense dos anos 40. Referencial, fornece linha e compasso a vários filmes centrados em dramas do boxe. A obra mestra O Touro Indomável (Raging Bull, 1980), segundo admitiu o próprio diretor Martin Scorsese, é claramente influenciada pela realização de inspiração faustiana extraída por Robert Rossen do roteiro original de Abraham Polonsky, principalmente na execução realista das tomadas no ring e da ambientação sombria e corrupta em torno dos embates, determinante à trajetória dos personagens. Também marcou Punhos de campeão (The set-up, 1949), de Robert Wise; O invencível (Champion, 1949), de Mark Robson; Marcado pela sarjeta (Somebody up there likes me, 1956), de Robert Wise; A trágica farsa (They harder they fall, 1956), de Mark Robson; e, inclusive, Rocky, um lutador (Rocky, 1976), de John G. Avildsen.


Corpo e alma é o primeiro filme a se abrir às práticas corruptas no boxe, praticadas notadamente por mafiosos. O pugilista, à medida que inicia a escalada rumo ao topo, chama a atenção de apostadores e monopolizadores dos bastidores das atividades e carreiras. Logo se torna um joguete manipulado por gângsters que controlam patrocínios, salários, contratos e promoções. Submetido às cruéis engrenagens do esporte — inúmeras vezes considerado a mais perfeita metáfora do sonho americano graças à ilusão que converte o boxeador em indivíduo singular, apoiado apenas em seu caráter e força de vontade para ascender socialmente após o difícil começo nas camadas economicamente mais desfavorecidas —, o boxeador termina restringindo a vida às entranhas do pesadelo.


Outras singularidades fazem Corpo e alma obra referencial, a partir de antecedentes originados nos anos 30. É dessa década a melodia que se tornou marca registrada da realização, de autoria dos compositores Johnny Green, Edward Heyman e Robert Sour. Mereceu as primeiras interpretações por Louis Armstrong. Após 1947 foi incorporada aos repertórios de Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Sarah Vaughn e inúmeros outros.


Dois atores de Corpo e alma, com passagens pelo pugilato, também se lançaram à atuação nos anos 30: Canadá Lee e John Garfield.


Carreiras truncadas pela perseguição macartista: Canada Lee, intérprete de Ben Chaplin, e John Garfield no papel Charley Davis



Garfield estreou no cinema em Quatro filhas (Four daughters, 1938), de Michael Curtiz. Sempre foi reconhecido por se posicionar abertamente em favor das causas sociais consideradas polêmicas, principalmente dos negros destituídos de direitos com os quais era frequentemente visto. Marcou presença em filmes engajados: Tornaram-me um criminoso (They made me a criminal, 1939), de Busby Berkeley; Juarez (Juarez, 1939), de William Dieterle; Cruel é o meu destino (Dust be my destiny, 1939), de Lewis Seiler; e, entre outros, o ousado melodrama noir O destino bate à porta (The postman always rings twice, 1946), de Tay Garnett. Manteve-se à esquerda após Corpo e alma com A luz é para todos (Gentleman's agreement, 1947), de Elia Kazan; Resgate de sangue (We were strangers, 1949) — a mais obscura realização de John Huston, praticamente um prenúncio da revolução cubana —; e Por amor também se mata (He ran all the way, 1941), de John Berry.


O negro Canadá Lee fez carreira no boxe de 1926 a 1933, na categoria peso-pesado. Entrou para o teatro ao perder a capacidade física para lutar. Em 1936 atuou na célebre montagem de Orson Welles para Macbeth, de William Shakespeare, totalmente interpretada por elenco negro. Militante da causa pela ampliação dos direitos civis, teve rápida passagem pelo cinema, restrita a quatro filmes além de Corpo e alma: Keep punching (1939), de John Klein; Um barco e nove destinos (Lifeboat, 1944), de Alfred Hitchcock; Fronteiras perdidas (Lost boundaries, 1949), de Alfred L. Werker; e Os deserdados (Cry, the beloved country, 1951), de Zoltan Korda.


Em Corpo e alma Garfield é o boxeador Charley Davis. Lee compõe o campeão Ben Chaplin, apeado do posto depois de muito explorado pela máfia do boxe. Davis é judeu remediado egresso dos bairros pobres de Nova York. De vocabulário limitado, optou pelo esporte para ajudar a mãe, após perder o pai em atentado. Aparentemente é a imagem do self made man, não fossem alguns fatores mais que circunstanciais. Porém, a grande surpresa do filme, considerada a época da realização, é o papel interpretado por Lee. Apesar de negro, Chaplin não é reduzido a estereótipo como era comum na época. Circula entre os brancos; é tratado como igual. Em momento algum é admoestado pela cor. É um dos personagens mais dignos do filme. Devido às contingências, torna-se treinador de Charley Davis — que o derrotou —, para quem cumpre o papel de boa consciência.



Acima e abaixo: o pugilista Charley Davis (John Garfield)



Lee e Garfield terão as carreiras tragicamente abreviadas em 1952, vitimados por fatais ataques cardíacos quando contavam, respectivamente, com 45 e 39 anos. Devido ao ativismo social, entraram na alça de mira do Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas ― o macartismo. Suportaram as perseguições, mas ao preço da debilitação física e psicológica. Com eles, significativa parte do elenco e da equipe de realização de Corpo e alma foi convocada a depor e, logicamente, a colaborar com o Comitê: o roteirista Abraham Polonsky, o diretor Robert Rossen, o produtor Bob Roberts, o diretor de fotografia James Wong Howe e os atores Anne Revere, Lloyd Gough, Joseph Pevney, Art Smith e Shimen Ruskin. À exceção de um, todos suportaram o peso das arbitrariedades dos inquisidores apoiados pelo FBI. Não se prestaram ao indigno papel de delatores e, por isso, tiveram as carreiras prejudicadas.


Anne Revere, responsável pelo papel de Anna Davis em Corpo e alma — mãe de Charley Davis e símbolo da genitora no cinema estadunidense ao longo das décadas de 30 e 40— ainda atuaria em oito filmes até 1951, quando se tornou blacklisted. Só voltou a interpretar em 1956, mesmo assim para séries de TV. Retornou ao cinema em 1970, em Macho Callahan (Macho Callahan), de Bernard L. Kowalsky, e Dize-me que me amas (Tell me that you love me, Junie Moon), de Otto Preminger. Faleceu em 1990, aos 87 anos.


A blacklisted Anne Revere no papel de Anna Davis, mãe do pugilista Charley Davis (John Garfield)



Abraham Polonsky estreou como roteirista em Corpo e alma e se lançou na direção em 1948 com o promissor noir A força do mal (Force of evil). Membro do Partido Comunista desde a década de 30, entrou para a lista negra em 1951. Daí a 1969, sobreviveu basicamente como roteirista de TV. Em 1957 fez a direção não creditada de Oedipux rex, de Tyrone Guthrie. Dirigiu Romance de um ladrão de cavalos (Romansa konjokradice) em 1971 e faleceu aos 88 anos em 1999.


Infelizmente, o diretor Robert Rossen roeu a corda da dignidade. Roteirista dos marcantes Heróis esquecidos (The roaring twenties, 1939), de Raoul Walsh, Um passeio ao sol (A walk in the sun, 1945), de Lewis Milestone, entre outros, foi filiado ao Partido Comunista de 1937 a 1947. Estreou na direção com Dama, valete e rei (Johnny O'Clock), feito no mesmo ano de Corpo e alma. Ainda realizaria o corajoso A grande ilusão (All the king's men, 1949), quando passou a ser investigado pelo Comitê. Em 1951 dirigiu Touros bravos (The brave bulls) e se tornou blacklisted. Não suportou o peso do ostracismo. Após dois anos resolveu colaborar. Delatou 57 pessoas suspeitas de associação ou simpatia ao Partido Comunista e pode retomar a carreira de cineasta. Morreu aos 57 anos, em 1966, três anos depois de dirigir o praticamente impecável Desafio à corrupção (The hustler, 1961).


Corpo e alma recebeu na corrida ao Oscar de 1948 o prêmio de Melhor Montagem (Francis D. Lyon e Robert Parrish), além de indicações a Melhor Ator para John Garfield e Melhor Roteiro. Do Círculo de Críticos de Nova York, em 1947, Garfield ficou na segunda posição dentre os indicados a Melhor Interpretação Masculina.


Charley Davis é, ao que se sabe, inspirado em personagens reais. De início, Corpo e alma seria a biografia do tricampeão de boxe Barney Ross. Porém, este confessou publicamente o vício em morfina decorrente do tratamento de graves ferimentos conseguidos durante a Segunda Guerra Mundial. Diante disso, por temer consequências negativas para a bilheteria, a Enterprise Productions transformou a história em ficção. Essa alternativa levou Ross a abrir processo judicial contra a companhia, ação que lhe rendeu a indenização de 60 mil dólares. No entanto, o papel do protagonista também pode estar calcado na carreira de Benjamin Leiner, mais conhecido por Benny Leonard, campeão dos pesos leves da década 20. Charley Davis é o primeiro papel de John Garfield como ator independente, após toda uma carreira contratado pela Warner Brothers.


Charley Davis (John Garfield) é  acossado por dilemas de consciência



A direção, afinada com o roteiro, embala a realização em leve atmosfera noir, condizente com o tema e a ambientação. A conotação faustiana decorre do frágil código moral de Charley Davis. Após as primeiras vitórias, conduz a carreira em crescente e descuidada busca pelo sucesso e dinheiro, do qual significativa parte é usufruída por terceiros que o manobram, impondo-lhe a quase completa derrocada moral. A narrativa se ordena como conjunto de orgânicos flashbacks desde a abertura. Davis, campeão mundial, está na véspera da decisiva disputa pelo título e pela honra. Roberts (Gough), especulador que o controla, obriga-o a entregar a luta ao adversário em troca de polpuda compensação financeira. Além disso, incomoda-o a recente morte do amigo e treinador Ben Chaplin, decorrente de sequelas agravadas no ring. Impossibilitado de dormir, abandona o campo de treinamento em busca de apoio moral e expiação às culpas acumuladas. A mãe e a namorada Peg (Palmer) o recebem friamente. Tenta consolo com Alice (Brooks), interesseira cantora de cabaré e amante do agente Quinn (Conrad). A população em geral ainda o idolatra, principalmente os mais pobres que o viram ascender na carreira. Nele apostam as parcas economias, ampliando-lhe o dilema moral. Charley rememora os dramáticos momentos da morte do pai (Art Smith), a decisiva amizade com Shorty Polaski (Pevney), o namoro com a culta e cosmopolita Peg, o começo da carreira sob a chancela de Quinn, a ascensão meteórica, a inevitável entrada em cena do manipulador Roberts, a fatídica luta pelo título com Ben Chaplin, a trágica morte de Shorty, a perda da própria alma e os antecedentes do novo combate pelo campeonato mundial com o provocador Jack Marlowe (Dorrell, não creditado).


A namorada de Charley Davis, Peg, é interpretada por Lili Palmer



O filme tem muitas qualidades. Uma das principais é a interpretação de Garfield. Vive um sujeito aparentemente decente apanhado na armadilha do sucesso rápido e do dinheiro fácil. Sobre isso Robert Rossen conduz a direção para obter o que sempre soube fazer de melhor: extrair composições sólidas de personagens frágeis no caráter, cujas escolhas acarretam em sofrimento pessoal e para terceiros. O filme estampa a luta de um homem perdido na selva de trilhos tortuosos que não domina. Apesar de tudo, é um tipo que não se quebra, como uma força da natureza. Terá a oportunidade de se provar e revelar o valor que ainda possui. Corpo e alma, drama pontuado de conotações morais, é mais que um mero filme de boxe. Garfield interpreta um personagem crível, esculpido pela dubiedade, obrigado a fazer escolhas nem sempre as mais socialmente acertadas. Vacila constantemente à medida que o filme avança. Ao contrário da maioria dos dramas hollywoodianos do período, não é um filme chapado, preto no branco, o que também justifica a filiação noir.


O atormentado Charley Davis é, provavelmente, o melhor papel da carreira de Garfield. O ator oferece uma interpretação nuançada, que lhe valeu a segunda indicação ao Oscar[1]. É o títere que se julga esperto, no controle das situações, até se ver afetivamente sozinho e destituído de todos os apoios. Percebe que jamais terá paz enquanto não retomar o controle sobre a própria vida e em circunstâncias consideradas decentes, custe o que custar. O embate final com Marlowe, combinado para ser uma marmelada, chega a transmitir a sensação de entrega do personagem às variáveis intervenientes durante o desenrolar de longos 15 assaltos que também funcionam como estações de prestação de contas com a consciência diante de uma plateia desconfiada e impaciente. Termina por romper o acordo imoral e vence a contenda, em honra de si próprio, da mãe, de Peg e dos sacrifícios que custaram as vidas de Ben e Shorty. Sabe que a ousadia foi arriscada. Porém, adianta corajosamente para Roberts: "O que vai fazer comigo? Irá me matar? Ora, todo mundo morre".


Abraham Polonsky, habituado às observações do cotidiano e aos jargões presentes no vocabulário das camadas sociais mais pobres, necessitadas de constante trabalho para viver, escreveu um roteiro cortante, preciso e conciso. Tudo flui com dinamismo e autenticidade, ainda mais quando o foco é desviado para os dilemas do protagonista num cenário em que imperam a natureza fria e gananciosa das apostas, do dinheiro e dos acordos de bastidores.


Apesar de ser um filme sobre o boxe, não há tantas lutas assim. De início, são bastante resumidas. O que vale é a vida que germina fora das cordas. Porém, há dois combates captados com cruel e inédito realismo. O primeiro, quando Charley Davis se bate com Ben Chaplin pelo título de campeão mundial. Não o informaram que o adversário sofria de grave coágulo no cérebro. Os golpes desferidos por Davis, em primeiro plano, miram praticamente a cabeça do oponente. O sangue e o inchaço no rosto de Chaplin são plenamente visíveis. Pela primeira vez o caráter selvagem do pugilato é exibido sem retoques, distanciamento e meios-tons. O operador James Wong Howe utilizou câmeras na mão enquanto se movimentava sobre patins para cobrir o ring e os movimentos da contenda de ponta a ponta, muitas vezes sem solução de continuidade. Luzes claras e intensas pairam sobre a objetiva e conferem um dado cirúrgico à encenação devido à fotografia de alto contraste conseguida. Logo se evidencia de onde veio a inspiração para a devassa do ring por Martin Scorsese e o diretor de fotografia Michael Chapman em O Touro Indomável.


Porém, a tensão em crescendo se apresenta na luta decisiva, perto do epílogo. Começa friamente. Porém, a consciência de Charley Davis está em processo de prestação de contas com ele mesmo enquanto os assaltos evoluem até o último regularmente permitido. A inquietação do público se une ao estado de vigília dos apoiadores próximos ao ring e aos golpes no centro do palco, que vão aumentando de intensidade. Há a sensação de que James Wong Howe filma uma batalha em progressão segundo o clima dos mais dinâmicos noticiários. Marlowe sente que há algo de errado e o resultado em seu favor não será cavado tão facilmente, o que se confirma no decisivo e último round quando Charley Davis avança embebido em fúria e adrenalina. Os cortes curtos, da montagem de Francis D. Lyon e Robert Parrish, transformam a disputa em sucessão de frenéticos instantâneos. Merecidamente fizeram jus ao Oscar da categoria. É uma das edições mais bem acabadas do cinema.



Charley Davis (John Garfield) e a cantora Alice (Hazel Brooks) 

Peg (Lili Palmer) e Charley Davis (John Garfield)



A participação de Lili Palmer merece comentário à parte, pois é algo que bem reflete as bases morais do puritanismo da terra do Tio Sam. A personagem Peg é pintora, solteira e mora em apartamento que divide com uma amiga escultora. Evidentemente, não poderia ser uma estadunidense da gema. Mulheres do país, até então, não viveriam dessa forma, tão livre e supostamente desregrada. A saída do roteiro, como acontecia em muitos filmes da época, foi a de atribuir origem ou influência francesa à garota. A atriz, geralmente desvalorizada, está bem como mais um anjo ou boa consciência de Charley. Ama o lutador pelo que é, sem maiores considerações por dinheiro e origens. Somente a debilidade moral do parceiro perturba a relação.


Anne Revere está no melhor do território ao qual o cinema estadunidense a relegou. É mais uma vez A MÃE vivida com muita garra e personalidade.


Impressão muito boa também causa o desempenho de Joseph Pevney como o intenso, otimista, leal e correto Shorty. Atuou em apenas seis filmes de 1946 a 1950, dentre os quais A rua sem nome (The street with no name, 1948), de William Keighley, e Mercado de ladrões (Thieve's highway, 1949), de Jules Dassin. A partir de 1950 se lançou na direção de cinema e TV. Nesta atividade, encerrada em 1985, ostenta filmografia das mais extensas, que o creditam como realizador de 91 filmes e séries[2].


Corpo e alma foi refilmado em 1981 por George Bowers. Manteve os títulos original e brasileiro.






Roteiro: Abraham Polonsky. Direção de fotografia (preto-e-branco): James Wong Howe. Música: Hugo Friedhofer. Canção: Body and soul, música de Johnny Green, letra de Edward Heyman, Robert Sour, Frank Eyton. Planejamento de guarda-roupa: Marion Herwood Keyes. Supervisão de montagem: Francis D. Lyon. Montagem: Robert Parrish. Direção de montagem: Gunther V. Fritsch. Assistente de direção: Robert Aldrich. Letras das canções: Frank Eyton, Johnny Green, Edward Heyman, Robert Sour. Direção de arte: Nathan Juran. Decoração: Edward J. Boyle. Engenheiro de som: Frank Webster. Direção musical: Emil Newman, Rudolph Polk. Gerente de produção executiva: Joseph C. Gilpin. Maquiagem: Gustaf M. Norin. Gravação de som: Sound Services Inc. Fotografia de cena: Durward Graybill (não creditado). Assistente de montagem: Michael Luciano (não creditado). Orquestração (não creditada): Gil Grau, Jerome Moross. Instrutor de boxe: John Indrisano (não creditado). Instrutor de diálogos: Don Weis (não creditado). Continuidade: Don Weis (não creditado). Estúdio de mixagem de som: Western Electric Recording. Tempo de exibição: 104 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1993)



[1] Perdeu para Ronald Colman por Fatalidade (A double life, 1947), de George Cukor. A primeira indicação ao Oscar aconteceu em 1939, como ator coadjuvante por Quatro filhas (Four daughters, 1938), de Michael Curtiz. Nessa ocasião, o vencedor foi Walter Brennan em Romance do Sul (Kentucky, 1938), de David Butler.