domingo, 31 de dezembro de 2017

O DISNEYANO GOOFY — PATETA, PARA OS BRASILEIROS — E O BASEBALL

O cachorro antropomorfizado Goofy — Pateta, no Brasil — surgiu em 1932 como figurante em desenhos animados protagonizados por Mickey Mouse. Nas primeiras aparições teve o nome de Dippy Dawg. A denominação foi alterada em 1934. Começou lenta escalada rumo ao estrelato em 1935 ao se firmar como um dos vértices do triângulo completado por Mickey e o Pato Donald. Daí até aproximadamente 1940, passou pelas mãos dos diretores Ben Sharpsteen, Burt Gillett, David Hand, Dick Huemer e Clyde Geronimi numa série de animações ágeis, marcadas por situações criativas e carregadas de surrealismo. Em 1939 ganhou o privilégio de atuar em uma exclusiva aventura curta: Goofy and Wilbur (1939), de Dick Huemer. Nos anos seguintes, sob a responsabilidade do diretor Jack Kinney, conheceu o auge ao protagonizar uma série de shorts nos quais se viu envolvido em atividades esportivas, profissionais e educativas. Como jogar baseball (How to play baseball), de 1942, é uma das muitas paródias atléticas que protagonizou. São cerca de oito minutos de narrativa dinâmica dividida entre a descrição elucidativa do jogo tão caro aos estadunidenses e os momentos finais de uma tensa partida de encerramento da temporada. Segue apreciação escrita de 1995. 






Como jogar baseball
How to play baseball

Direção:
Jack Kinney
Produção:
Walt Disney (não creditado)
Walt Disney Productions
EUA — 1942
Elenco:
Vozes de George Johnson, Fred Shields.



Nos Estúdios Disney: Pinto Colvig - a principal voz de Goofy - e o diretor Jack Kinney



Estrelado por Pateta — Goofy segundo a denominação original —, Como jogar baseball é desenho animado curto com aproximadamente oito minutos. Foi realizado especificamente para complementar as sessões de Ídolo, amante e herói (The pride of the Yankees, 1942), dirigido por Sam Wood e protagonizado por Gary Cooper no papel do lendário astro de baseball Lou Gehrig, falecido em 1941. O produto da Disney assinala a trigésima oitava aparição nas telas cinematográficas do magro, alto, atrapalhado, desengonçado, generoso, simpático e estúpido cachorro antropomorfizado da vasta galeria de personagens concebidos pela Walt Disney Productions.


Até o momento da elaboração desta apreciação, Pateta marcava presença em 88 realizações das mais diversas metragens originalmente concebidas para o cinema e, em menor parte, para a televisão. Surgiu em 1932 com o nome de Dippy Dawg. Nesse ano estreou como figurante no desenho curto Mickey's Revue, de Wilfred Jackson. Nessa condição apareceu em The whoopee party (1932), Touchdown Mickey (1932), The Klondike Kid (1932), Mickey's mellerdrammer (1933) e Os tempos antigos (Ye olden days, 1933), dirigidos por Jackson. Em 1934 tem o status relativamente elevado e o nome alterado para Goofy no curto Em benefício dos órfãos (The orphan's benefit), de Burt Gillet, no qual o protagonismo é dividido entre Mickey e o Pato Donald.






O estrelato de Pateta começa para valer em 1935 com o curto A oficina mecânica de Mickey (Mickey's service station), de Ben Sharpsteen. É o marco inicial da célebre formação Mickey-Donald-Pateta que permitiu primorosas e ousadas animações tingidas de surrealismo com destaques para A brigada do Mickey (Mickey's fire brigade, 1935), de Ben Sharpsteen; O dia de mudança (Moving day, 1936), de Ben Sharpsteen; Mickey e o mágico (Magician Mickey, 1937), de David Hand; Caçadores de alces (Moose hunters, 1937), de Ben Sharpsteen; Relojoeiros das alturas (Clock cleaners, 1937), de Ben Sharpsteen; Os fantasmas solitários (Lonesome ghosts, 1937), de Burt Gillett; O barco do Mickey (Boat builders, 1938), de Ben Sharpsteen; O trailer do Mickey (Mickey's trailer, 1938); Ben Sharpsteen; Caça à baleia (The whalers, 1938), de David Hand e Dick Huemer; e O rebocador do Mickey (Tugboat Mickey, 1940), de Clyde Geronimi.






Ano particularmente significativo para o personagem é 1939: ganha a oportunidade de estrelar um desenho concebido exclusivamente para ele: Goofy and Wilbur (1939), de Dick Humer. Novas oportunidades de atuações solo surgem com O planador do Pateta (Goofy's glider, 1940) e Ladrão de bagagem (Baggage buster, 1941), concebidos por Jack Kinney.





Durante as décadas de 40 e 50, Pateta encontra a verdadeira vocação: instrutor prático, voluntário ou acidental. Protagoniza uma série de paródias esportivas que englobam diversos jogos e atividades atléticas. Também ministra lições acerca de afazeres profissionais variados e é porta-voz de assuntos educacionais relacionados ao trânsito e à preservação da saúde. Destacam-se A arte de esquiar (The art of skiing, 1941), Pateta vai à luta (The art of self defense, 1941), Como jogar baseball, Pateta nas Olimpíadas (The olympic champ, 1942), Como nadar (How to swim, 1942), Como pescar (How to fish, 1942), How to be a sailor (1944), Como jogar golfe (How to play golf, 1944), How to play football (1944), African diary (1945), Raquetadas muito loucas (Tennis racquet, 1949), Ginástica patética (Goofy gymnastics, 1949), Motormonia (Motor mania, 1950), How made home (1951), Tomorrow we diet (1951), No smoking (1951), Como ser um detetive (How to be a detective; 1952), How to dance (1953), How to sleep (1953), Aquamania (1961), Fobia de estrada (Freewayphobia or the art of driving the super highway, 1965) e Goofy's freeway trouble (1965). Wolfgang Reitherman dirigiu Aquamania. Ficaram por conta de Les Clark Fobia de estrada e Goofy's Freeway Trouble. Os demais títulos são de Jack Kinney. Em algumas dessas realizações o personagem sem sempre é identificado como Goofy. Pode ser Mac, Max, Mr. X e George.


Como geralmente acontecia, Pateta contracena com vários duplos em Como jogar baseball. É arremessador, juiz, rebatedor, defensor e, claro, o público. Além dele há a figura oculta do narrador/apresentador esportivo. Este descreve a quadra, táticas e equipamentos. Tudo é levado em consideração, inclusive o aspecto um tanto confuso do jogo, principalmente para os não iniciados estadunidenses. Ao longo de todo o tempo não se perdem oportunidades para boas e rápidas piadas, principalmente as visuais. Como jogar baseball corre por oito minutos de narrativa francamente dinâmica. Começa calmamente, com a apresentação e descrição dos equipamentos — bola, taco, luva, calçados, trajes —, construção e concepção do estádio além da visão aérea do esquema básico de uma partida — que tenta explicar para o grande público os movimentos e táticas. As posições, os equipamentos, preparação dos jogadores, formas de arremesso com respectivos efeitos aplicados às bolas não são esquecidos. Tudo lembra um balé picaresco garantido pelas evoluções estrambóticas do personagem. Nisto, Jack Kinney e a equipe de animadores que lidera são craques.







São cerca de quatro minutos dedicados aos aspectos mais didáticos do jogo. Corta-se, a seguir, para a partida de baseball propriamente dita. Os espectadores são introduzidos no tempo final da suada e disputada peleja clássica entre os Gray Sox e os Blue Sox. Estes lideram pela folgada margem de 3x0. O adversário fará de tudo para mostrar serviço e reação. O rebatedor Gray consegue acertar com força, para o alto e longe, bola aparentemente indefensável. Logo acelera rumo às bases. Enquanto isso, o aparvalhado arremessador Blue tenta agarrar a pelota fragmentada em fiapos pelo violento impacto da tacada. Tudo é ordenado com muita cadência e dinamismo, inclusive a narração originalmente por conta de Fred Shields. Pateta não tem muito a dizer. Neste filme, deu folga ao dublador oficial — o icônico e hilariante Pinto Colvig. Em seu lugar foi escalado George Johnson. O aporte sonoro — incluindo o acompanhamento musical e as onomatopeias para impactos, freadas, fricções, corridas e saltos — se revelam decisivos à graça do produto. Para uma animação que valoriza acima de tudo o movimento e os equívocos, a fluência se apresenta como fator permanente e garante a atenção do começo ao fim. Tudo se revela muito divertido, apesar de haver poucas novidades nos aspectos formais.





História: Dick Kinney, Sylvia Moberly-Holland. Música: Paul J. Smith. Assistente de direção: Lou Debney. Efeitos de animação: Edwin Aardal, Andy Engman. Animadores: Les Clark, Marc Davis, Hugh Fraser, Ward Kimball, Milt Neil, John Sibley, Bill Tytla. Animador de Goofy: Ollie Johnston. Desenhos de fundo: Maurice Greenberg. Layout: Al Zinnen. Fotografia em Technicolor. Processo de mixagem de som: RCA Sound System. Tempo de exibição: 8 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1995)

domingo, 24 de dezembro de 2017

UMA DILACERANTE TRAGÉDIA ENCENADA NOS GELADOS ALPES SUÍÇOS

Um dos filmes mais dilacerantes que vi é o premiado A viagem da esperança (Reise der hoffnung/Umud'a yolculuk/Journey of hope, 1990), coprodução entre Turquia, Suíça, França e Inglaterra sob direção de Xavier Koller. Conta história simples, tão pungente quanto verdadeira, acerca da trágica situação comum a refugiados e imigrantes ilegais. Estes, tangidos pelo desespero da sobrevivência em condições minimamente dignas, buscam quase sempre a Europa cada vez mais predisposta a não recebê-los. O roteiro escrito pelo diretor em parceria com Feride Çiçekoglu toma por base um acontecimento fartamente noticiado pelos jornais europeus em 1988: a morte por frio e cansaço de um menino de oito anos que tentava, acompanhado dos pais e de outros desesperados, vencer as geladas escarpas alpinas e encontrar possibilidades de existência na Suíça. No filme, o pequeno se chama Ali (Emin Sivas). É o caçula de Meryem (Nur Sürer) e Haydar Sener (Necmettin Çobanoglu em desempenho exemplar). O trio, parte de numerosa família da etnia curda, provém de terras áridas e improdutivas na Turquia. A narrativa direta, despojada e sóbria é forte e honesta ao acompanhar o desenrolar de um turbilhão de sensações concentradas principalmente nas esperanças de Haydar — o pai que hipotecou a vida e o futuro, inclusive da família, para tentar realizar uma utopia barrada pelos aspectos mais ásperos e inexpugnáveis de uma geografia indiferente e cruel em suas variações físicas e humanas. Segue apreciação escrita em 1991. 






A viagem da esperança
Reise der hoffnung/Umud'a yolculuk/Journey of hope

Direção:
Xavier Koller
Produção:
Alfi Sinniger, Peter-Christian Fueter, Enzo Purcell, Bernd Hellthaler.
Gatpicsund, Condorfeatures, SRG/SSR, Antea Cinematografica, Dewe Heltthaler International, Cinerent Filmequipment Service AG, Film Four International, Cineverde, Eurimages, Département Fédéral de l'Intérieur (Suíça), Schweizer Fernsehen (FS), Schweizerische Radio- und Fernsehgesellschaft (SRG), Télévision Suisse-Romande (TSR)
Suiça, Turquia, França, Inglaterra — 1990
Elenco:
Necmettin Çobanoglu, Nur Sürer, Emin Sivas, Yaman Okay, Erdinç Akbas, Selahattin Firat, Meryem Çaki, Yasar Güner, Yaman Tarkan, Hasan Dündar, Ali Demirbas, Hseyin Mete, Semiha Dicleli, Saadet Türköz, Sevin Metin, Sebastiano Filocamo, Ihsan Karasubasi, Selahattin Karadag, Kutay Köktürk, Yasar Kutbay, Dietmar Schönherr, Teco Celio, Theo Marti, Fritz Denoth, Herbert Leiser, Mathias Gnädinger, Abbas Manis, Mehmet Sugan, Erdal Merdan, Francesco Migliaccio, Konstantin A. Schmidt, Andrea Zogg, Hansjörg Schneider, Nicolaï Mylanek, Liliana Heimberg, Jürgen Cziesla, Joseph Scheidegger, Albert Freuler, René Peier, Mastrocinque, Mustafa, Mehmet, Fatma, Sükran, Zeynep, Elif.



O diretor Xavier Koller com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por A viagem da esperança



A crítica brasileira em geral torceu o nariz ou apresentou reações mornas para A viagem da esperança. Em parte pelo ressentimento decorrente de motivo francamente fútil: essa despretensiosa produção sobre o drama de imigrantes da etnia curda que trocam as certezas e falta de possibilidades da Turquia na qual habitam pela insegura utopia do “paraíso” suíço desbancou, na corrida ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o franco-favorito Cyrano (Cyrano de Bergerac, 1990), de Jean-Paul Rapenneau. Algumas crônicas, firmadas quando do lançamento da dolorosa epopeia de Xavier Koller, preferiram trocar o exercício da apreciação e análise por protestos quanto ao suposto equívoco da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Outros setores da crítica, igualmente inconformados, optaram por se perder em discussões bizantinas a respeito de Xavier Koller e o filme serem favoráveis ou contrários aos curdos e turcos.


Deixando de lado as idiossincrasias do Oscar e a questão partidária de fundo maniqueísta, é impossível não se sensibilizar com as vigorosas imagens descritivas da tragédia que aos poucos se acerca dos passageiros de A viagem da esperança. Cabe assinalar, acima de tudo, a entrega sincera e despojada do elenco, com amplo destaque para Necmettin Çobanoglu — visto em Yol (Yol, 1982), de Serif Goren e Yilmaz Güney — no papel de Haydar Sener, marido de Meryem e pai do garoto Ali — soberbamente interpretados, respectivamente, por Nur Sürer e Emin Sivas. Çobanoglu é daqueles atores capazes de concentrar toda a força do personagem na expressividade do olhar repleto de nuances que comunicam todos os sentimentos do mundo.


O garoto Ali Sener interpretado por Emin Sivas

Na árida Turquia, Haydar Sener - desempenho soberbo de Necmettin Çobanoglu - sonha com a Suíça

A família Sener: a mãe Meryem (Nur Sürer), Ali (Emin Sivas) e o pai Haydar (Necmettin Çobanoglu)


A direção de Xavier Koller revela genuíno grau de sensibilidade e perfeita precisão rítmica na orquestração das peças que formam o inenarrável drama encenado na alpina solidão gelada. O filme é seco e nem por isso desprovido de emoção. A viagem da esperança está entre as mais tristes e dramáticas histórias encenadas pelo cinema. O roteiro de Koller e Feride Çiçekoglu parte de uma notícia de jornal que deixou funda impressão no diretor: a morte por frio e cansaço de um garoto turco de sete anos. Acompanhado dos pais e de um punhado de conterrâneos desesperados, tentava, em outubro de 1988, entrar ilegalmente na Suíça pela mais inexpugnável das rotas.


Incentivado pelo exemplo do irmão Cemal — que trocou a árida e pedregosa paisagem rural da Turquia pela promessa de leite e mel da terra suíça da “promissão” —, Haydar resolve se desprender das madrastas raízes. Vende o pouco que tem, distribui sete dos oito filhos entre os parentes e parte com o caçula e a esposa em busca do “paraíso”. Confia o futuro a uma rede clandestina de agenciadores inescrupulosos e embarca em navio cargueiro da rota Istambul-Nápoles. Na cidade italiana a família consegue carona com o simpático e solidário caminhoneiro Ramser (Gnädinger) até a fronteira com a Suíça. O sonho, aparentemente tão fácil, termina no posto de inspecção. Haydar, Meryen e Ali são barrados. Voltam a Nápoles e encontram compatriotas igualmente clandestinos em busca do mesmo sonho. Juntos e dispostos a tudo confiam em uma quadrilha local de exploração de imigrantes ilegais formada basicamente de turcos. A “organização” irá introduzi-los na Suíça pela porta dos fundos: os Alpes íngremes e gelados. Haydar e companhia se submetem a um insuportável estágio na invernal estação do inferno, sem direito à aprovação. A geografia, tanto a física — a escarpa traiçoeira, o vento cortante e constante, o frio mortal — como a humana — sarcasmo, ganância, falta de escrúpulos, indiferença, rigorismo burocrático da fria e impessoal racionalidade legal —, logo revela implacável crueza e resistência à penetração de estranhos.


A família Sener -  Meryem (Nur Sürer), Ali (Emin Sivas) e Haydar (Necmettin Çobanoglu) - com o solidário caminhoneiro Ramser (Mathias Gnädinger)

 Ramser (Mathias Gnädinger) e Ali (Emin Sivas)


Momentos antes, com um comentário amargo e resignado diante das dificuldades, Haydar concluiu: o país pretendido, que se recusava a recebê-los, não era de fato para eles. Porém, foram longe demais para retornar. Os Alpes, percebidos à distância, pareciam tranquilizadores. Lembram a paisagem mediterrânea elevada e pedregosa da Turquia das origens — descontados os tons acinzentados do horizonte e a quase imperceptível capa branca dos cumes nevados. Porém, basta o contato real com a obrigação extenuante e perigosa da escalada para qualquer referência de familiaridade se perder. Na noturna solidão gelada da montanha, Haydar e Meryem sofrem a suprema provação de ver ceifadas as raízes que lhes dariam continuidade e validariam a arriscada empreitada: Ali não resiste ao frio e morre. O pai experimenta a dura provação de sobreviver à descendência. O expressivo olhar de Çobanoglu é perfeito na comunicação da brutal sensação da perda, traduzida como fracasso, inutilidade e falta de sentido.



Acima e abaixo, a família Sener - Meryem (Nur Sürer), Ali (Emin Sivas) e Haydar (Necmettin Çobanoglu) - entre apreensivas esperas e deslocamentos


Duas fotografias assumem particular e capital importância em A viagem da esperança. A primeira é o cartão postal enviado por Cemal. Parece menosprezar ou ocultar, na exposição da paisagem verdejante e acolhedora em primeiro plano, o monótono e trágico som da música soprada pelo cortante e mortal vento dos Alpes localizados ao fundo. A outra é o retrato obtido por Ali do caminhoneiro que conduziu a família à fronteira suíça. Mostra, de frente, o rosto brincalhão de Ramser apontando a língua. Esse instantâneo inocente, de jocosa puerilidade, parece traduzir, ainda que acidentalmente, o desprezo da Europa pelos aflitos deserdados que lhe rondam as fronteiras.


Ali Sener (Emin Sivas)


Além do Oscar, A viagem da esperança arrebatou, no Festival de Locarno, o Leopardo de Bronze pela Melhor Direção.





Roteiro: Xavier Koller, Feride Çiçekoglu, a partir de notícia de jornal. Direção de fotografia (cores) e câmera: Elemér Ragályi. Segunda câmara: Pio Corradi. Assistentes de câmeras: Claudios Kelterborn, Marco Barberi, Marco Barberi, Imre Sisa, Heike Huber. Montagem: Daniel Gibal, Galip Iyitanir. Música: Jean Garbarek, Terje Rypdal, Arild Andersen, Egberto Gismonti. Produção musical: Manfred Eicher. Assistente de direção: Konstantin Schmidt. Continuidade: Heike Huber. Produtor associado: Sabina Woolf. Direção de arte: Kathrin Brunner. Figurinos: Grazia Colombini. Gerente de produção: Raimondo Esposito. Coordenação de construções: José Matos. Contrarregra: Bele Schneider. Assistente de pós produção de som: Michael G. Gunther. Ruídos de sala: Andreas Schneider. Alimentação e assistência de produção: Ernst Meyer. Contabilidade: Roberto Ornaro. Agradecimentos a: Edi Hubschmid. Tempo de exibição: 110 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1991)

domingo, 17 de dezembro de 2017

CARY GRANT VALORIZA A ÉTICA PIONEIRA E CONQUISTA KATHARINE HEPBURN

Holiday (1938), de George Cukor, é a segunda transposição para o cinema de famosa peça teatral de Philip Barry. Para azar do personagem principal, o íntegro e esforçado plebeu Johnny Case (Cary Grant), a realização recebeu no Brasil o estúpido e mentiroso título de Boêmio encantador. Nas emissoras de televisão não teve sorte melhor: foi rebatizada para Brotinho encantador e, nesse caso, alude ao papel da centrada e magnânima Linda Seton (Katharine Hepburn). A direção é de um mestre na condução de comédias sofisticadas valorizadas por situações enfáticas e diálogos precisos: George Cukor, que tantas confirmações de talento apresentou com As quatro irmãs (Little women, 1933), David Copperfield (The personal history, adventures, experience, & observation of David Copperfield the younger, 1935), Núpcias de escândalo (The Philadelphia story, 1940), Fatalidade (A double life, 1947), Nasce uma estrela (A star is born, 1954) e, entre outros, Minha bela dama (My fair lady, 1964). Boêmio encantador é a quarta das onze associações do diretor com a talentosa Katharine Hepburn. Ela e Grant estão afinadíssimos nessa comédia desenvolvida basicamente em interiores. Contam com o suporte de atores talentosos, dentre os quais o sempre impagável Edward Everett Horton como o espirituoso e sagaz Professor Nick Potter. Nos anos ainda quentes da Grande Depressão e do New Deal de Franklin Delano Roosevelt, o filme elogia o mito da iniciativa individual característica dos pioneiros que ergueram os Estados Unidos e, supostamente, perseveraram sem sacrificar a integridade pessoal. Por outro lado, encena leve e divertido ataque à ética puritana da valorização do acúmulo da riqueza material a qualquer preço. Segue apreciação escrita em 1996.






Boêmio encantador
Holiday

Direção:
George Cukor
Produção:
Everett Riskin
Columbia
EUA — 1938
Elenco:
Katharine Hepburn, Cary Grant, Doris Nolan, Lew Ayres, Edward Everett Horton, Henry Kolker, Binnie Barnes, Jean Dixon, Henry Daniell, os não creditados Marion Ballou, Beatrice Blinn, Thomas Braidon, Maurice Brierre, Ralph Brooks, Mabel Colcord, Luke Cosgrave, Beatrice Curtis, Ann Doran, Neil Fitzgerald, Bess Flowers, Bobbie Hale, Mitchell Harris, George Hickman, Howard C. Hickman, Maude Hume, Raymond Lawrence, Eric Mayne, Tom McGuire, Matt McHugh, Frank McLure, Edmund Mortimer, George Pauncefort, Esther Peck, Hilda Plowright, Alexander Pollard, Charles Richman, Cyril Ring, Lillian West, Eric Wilton e em participações excluídas na montagem de Harry Allen, Frank Benson, Aileen Carlyle, Edward Cooper, Margaret McWade, Frank Shannon, Charles Trowbridge.



O diretor George Cukor - à esquerda - com os atores John Howard, Katharine Hepburn e Cary Grant
Bastidores de Núpcias de escândalo (The Philadelphia story, 1940)



Katharine Hepburn, atriz fetiche de George Cukor, atuou sob sua direção em onze filmes. Boêmio encantador — exibido na televisão brasileira como Brotinho encantador — é o quarto. Os anteriores: Vítimas do divórcio (A bill of divorcement, 1932), As quatro irmãs (Little women, 1934) e Vivendo em dúvida (Sylvia Scarlett, 1935). Reencontraram-se em Núpcias de escândalo (The Philadelpia story, 1940), O fogo sagrado (Keeper of the flame, 1942), À meia luz (Gaslight, 1944), A costela de Adão (Adam’s rib, 1949), A mulher absoluta (Pat and Mike, 1952), Amor entre as ruínas (Love among the ruins, 1974) e O coração não envelhece (The corn is green, 1979). Os dois últimos foram realizados para a TV.


Katharine Hepburn como Linda Seton


Além de Boêmio encantador, Hepburn estrelou, ao lado de Cary Grant, Vivendo no abandono, Levada da breca (Bringing up baby, 1938), de Howard Hawks — considerada por muitos a melhor comédia maluca do cinema — e Núpcias de escândalo.


Boêmio encantador é a segunda adaptação para as telas da peça teatral de Philip Barry. A primeira, de 1930, resultou em Holiday, de Edward H. Griffith, interpretada por Ann Harding, Mary Astor, Edward Everett Horton e Heda Hopper. Originalmente foi encenada no Teatro Plymouth de Nova York, em 1928. Na oportunidade, Hope Williams interpretou a protagonista Linda Seton. Coincidentemente, para o caso de imprevistos, Katharine Hepburn estava escalada como atriz substituta. Permaneceu três meses no posto e nunca foi acionada: Williams jamais faltou às apresentações. Importa, no caso cinematográfico: a estrela favorita de George Cukor estava familiarizada com o argumento e o papel quando foi chamada para viver Linda Seton no cinema. A princípio, a personagem seria de Irene Dunne — descartada por pressões do diretor quando Hepburn se apresentou disponível.


Cary Grant e Katharine Hepburn nos papéis de Johnny Case e Linda Seton 


São controversas as informações a respeito do desempenho de Boêmio encantador nas bilheterias. No artigo Cary Grant, um galã sofisticado, A. C. Gomes de Mattos atesta: “A fita não veio a ser o triunfo que a Columbia esperava”[1]. Porém, João Lepiane sustenta em Um monstro sagrado chamado Katharine Hepburn: o título foi “O segundo maior sucesso de bilheteria da Columbia naquele ano (1938)”[2].


O filme é uma comédia em tom menor, de nível infinitamente superior a qualquer uma das desmioladas produções cômicas do cinema estadunidense de hoje. Apesar de sofrer os implacáveis efeitos do tempo, permanece agradabilíssima. Está entre as muitas saudações prestadas por Hollywood, durante os anos 30 — época da Grande Depressão e do New Deal de Franklin Delano Roosevelt — à consciência liberal de “boa cepa”. Traduzindo: Boêmio encantador elogia a mítica iniciativa individual característica dos pioneiros que ergueram os Estados Unidos: seres determinados que construíram suas vidas a partir do próprio esforço e não admitiram sucumbir aos apelos da riqueza fácil conseguida, muitas vezes, às custas da integridade pessoal. O personagem Johnny Case (Grant) busca a felicidade anunciada pelos pais fundadores da nação e prometida em declarações, cartas de direitos e na própria Constituição.


Johnny Case (Cary Grant) discute matrimônio, negócios e futuro com a noiva Julia Seton (Doris Nolan) e o quase sogro Edward Seton (Henry Kolker)

Julia Seton (Doris Nolan) e Johnny Case (Cary Grant) surpreendidos por Linda Seton (Katharine Hepburn)

  
Case é um jovem plebeu. Apaixonou-se por Julia Seton (Nolan) sem saber que é milionária herdeira do banqueiro Edward Seton (Kolker). O pai — esquecido das pobres origens familiares — desaprova o pretendente. Depois de muitas ressalvas aceita o matrimônio. Porém, pretende enquadrar o futuro genro ao modo de vida da família. Júlia, carne e sangue de Edward, concorda. Parece não se importar com as ideias próprias do noivo. Afinal, a ele é oferecido importante e bem remunerado cargo nas empresas do patriarca. O que mais um pobretão poderia querer?


No entanto, as pretensões à independência do inconformado Johnny são apoiadas pela rebelde e infeliz Linda (Hepburn), irmã de Julia e, em menor escala, pelo mano Ned (Ayres). Para ela, a insaciável sanha do pai por dinheiro e posição social provocou a morte prematura da mãe. Quanto a Ned, é tolhido na vocação musical e obrigado a prestar serviços “mais úteis” no banco da família.


Doris Nolan, Katharine Hepburn, Cary Grant e Lew Ayres vivem, respectivamente, Julia Seton, Linda Seton, Johnny Case e Ned Seton

Linda Seton (Katharine Hepburn) e Johnny Case (Cary Grant)


No começo, Linda supunha que o rosto juvenil de Johnny ocultava apenas um inescrupuloso caçador de fortunas. Conhece-o melhor durante as muitas controvérsias em torno do matrimônio. Apaixonam-se, como é óbvio. Porém, a infeliz garota também é magnânima. Vê no casamento de Julia com o rapaz uma oportunidade de salvá-la do mal familiar. Assim, afasta-se. Evidentemente, o roteiro encontra um jeito de reordenar as situações e reaproximar os sonhos de felicidade individual de Johnny Case com o desejo de emancipação de Linda. O jovem rompe o noivado ao perceber que Julia pretende submeter a união às determinações paternas. Pouco antes do momento crucial, Edward Seton vai ao cúmulo de organizar por conta própria o roteiro para a lua-de-mel. Desgostoso, Case abandona tudo e parte em viagem na companhia do casal amigo Nick Potter (Horton) e Susan Elliott (Dixon). No navio, tem a grata surpresa de encontrar Linda. Ela largou tudo para ficar ao lado dele.


Johnny Case (Cary Grant), Nick Potter (Edward Everett Horton) e Susan Elliott (Jean Dixon)

Johnny Case (Cary Grant) e Linda Seton (Katharine Hepburn)

  
Boêmio encantador é leve e divertido ataque à ética puritana da valorização do acúmulo da riqueza material a qualquer preço. Antes de entrar para o cinema nos primeiros tempos do sonoro, Cukor dirigiu no teatro várias comédias idênticas. Tornou-se especialista no gênero. Compensa a pouca movimentação e os limites do cenário fechado — a ação se desenrola quase que totalmente na mansão dos Seton — com diálogos e comentários afiadíssimos. Atualmente, quase sessenta anos após a realização, permanecem como principal fonte de interesse. Um exemplo: Edward Seton revela a Júlia as dúvidas quanto ao caráter de Johnny. Acaba aludindo à segurança proporcionada pelo charuto preferido, do qual conhece a procedência: “Sei que não explodirá na minha cara”, sustenta. Os atores estão bem, principalmente Cary Grant em animada e solta interpretação. Infelizmente, o divertido casal Potter — contraponto ao modelo de casamento sonhado por Julia — tem poucas cenas. Edward Everett Horton e Jean Dixon estão ótimos, principalmente na festa de celebração do noivado fracassado. No salão de entrada à mansão dos Seton, Nick não se contém e comenta para a esposa: “Isto aqui lembra o palácio de Calígula”. O ambiente, tomado pela grã-finagem esnobe, deixa-os totalmente deslocados.





Roteiro: Donald Ogden Stewart, Sydney Buchman, com base em peça de Philip Barry. Direção de fotografia (preto e branco): Franz Planer. Montagem: Otto Meyer, Al Clark. Direção de arte: Stephen Goosson, associado a Lionel Banks. Decoração: Babs Johnstone. Costumes: Robert Kalloch. Joias: Paul Flato, Eugene Joseff (não creditado). Direção musical: Morris Stoloff. Música (não creditada): Sidney Cutner, Paul Mertz (música de estoque), Joseph Nussbaum (música de estoque), Ben Oakland (música de estoque). Assistente de direção: Cliff P. Broughton (não creditado). Som: Lodge Cunningham (não creditado). Sistema de Mixagem de som: Western Electric Mirrophonic Recording. Tempo de exibição: 95 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1996)



[1] GOMES DE MATTOS, A. C. Cary Grant, um galã sofisticado. Cinemin, 5. série. Rio de Janeiro, n. 32, mar.1987. p. 23.
[2] LEPIANE, João. Um monstro sagrado chamado Katharine Hepburn. Cinemin, 5. série. Rio de Janeiro, n. 51, fev. 1989. p. 22. Parênteses de José Eugenio Guimarães.