domingo, 13 de novembro de 2016

A OBSCURA, MALDITA E PREMONITÓRIA SAGA FAMILIAR DE JOHN FORD — COM ATOR BRASILEIRO

Na cinefilia, orgulho-me de minha filiação fordiana e de afirmar, com segurança, que assisti a todos os filmes preservados do diretor de Rastros de ódio (The searchers, 1956), inclusive os documentários sobre a Segunda Grande Guerra, o inédito comercialmente no Brasil The rising of the moon (1957), as peças de propaganda encomendadas sobre a Guerra da Coréia — This is Korea! (1951) e Korea (1959) — e o postumamente lançado em 1976 Chesty: A tribute to a legend (1970). Porém, o trabalho fordiano que mais me empenhei em conhecer é o obscuro E o mundo marcha (The world moves on, 1934), praticamente amaldiçoado pelo diretor. Atualmente, o título para o Brasil, segundo o IMDbInternet Movie Database — é A marcha dos séculos. Trata-se de realização de encomenda. Ford, na qualidade de diretor contratado, teve, por imposição da Fox Film Corporation, que seguir as linhas mestras do roteiro de Reginald Berkeley e realizar uma saga familiar de longo curso segundo os moldes do oscarizado e atualmente envelhecido Cavalgada (Cavalcade, 1933), de Frank Lloyd. O resultado da experiência, em nada gratificante, repugnou-o. Mesmo assim, apesar da pouca liberdade de movimento, encontrou formas de se vingar. É um filme estranho ao universo do cineasta. Por outro lado, é um dos mais premonitórios da história do cinema. Conta, ainda por cima, com um brasileiro no elenco, a quem Ford se referiu, segundo testemunho de Glauber Rocha, como "meu amigo e grande ator". Segue apreciação escrita em 2012.






E o mundo marcha
The world moves on

Direção:
John Ford
Produção:
Winfield R. Sheehan
Fox Film Corporation
EUA — 1934
Elenco:
Madeleine Carroll, Franchot Tone, Reginald Denny, Siegfried "Sig" Rumann, Louise Dresser, Raul Roulien, Stepin Fetchit, Lumsden Hare, Dudley Digges, Frank Melton, Brenda Fowler, Russell Simpson, Walter McGrail, Marcelle Corday, Charles Bastin, Barry Norton, George Irving, Ferdinand Schumann-Heink, Georgette Rhodes, Claude King, Ivan F. Simpson, Frank Moran e os não creditados Neville Clark (eliminado na montagem), Eva Dennison (eliminada na montagem), Brooks Benedict, Anita Brown, Pierre Callos, Fred Cavens, Jack Chefe, André Cheron, Pierre Couderc, Sidney De Gray, Mario Dominici, Francis Ford, J. C. Fowler, Hans Fuerberg, Mary Gordon, Jesse Graves, Ben Hall, Winter Hall, Ramsay Hill, Adolf Hitler (imagens de arquivo), Fred Hueston, Hans Joby, Beulah Hall Jones, Kenner G. Kemp, Colin Kenny, Emmett King, Otto Kottke, Louise La Croix, Charles Legneur, Jacques Lory, Margaret Mann, Alphonse Martell, Tony Martelli, Billy McClain, Paul McVey, Torben Meyer, George Milo, Edmund Mortimer, Benito Mussolini (imagens de arquivo), Jack Pennick, John S. Peters, Albert Pollet, Frank Reicher, George Renault, Larry Steers, Harry Tenbrook, Anders Van Haden, Perry N. Vekroff, Hans von Morhart, William Worthington.



Quando das filmagens de Fomos os sacrificados (They were expendable, 1945)
O diretor John Ford e a atriz Donna Reed, intérprete da Tenente Sandy Davyss



Dentre os títulos menos conhecidos de John Ford — excluídos os consumidos por incêndios nos depósitos dos estúdios ao longo dos anos 20, quando se perderam, decerto em definitivo, perto de 60 filmes[1]E o mundo marcha[2] é o mais obscuro. Para tanto contribuiu o próprio diretor. Alegava, abertamente, não guardar simpatia alguma pelo trabalho. Fora praticamente obrigado a fazê-lo, como diretor contratado. Tentou de tudo para tornar a história mais leve e palatável, inclusive com a adição de trechos cômicos. Porém, os produtores bateram o pé. As linhas mestras do roteiro desvitalizado de Reginald Berkeley — baseado em história de sua autoria — deveriam ser seguidas à risca. A peça, durante a fase de elaboração, já merecera os tratamentos de praxe pelos não creditados Doris Anderson, William M. Conselman, Joe Cunningham, James Gleason, Llewellyn Hughes, Edward T. Lowe Jr. e Henry Wales[3].


O produto é totalmente estranho ao cinema fordiano. O andamento narrativo é engessado por excesso de pompa, solenidade e circunspecção; as interpretações trazem vícios do período silencioso; os atores se movimentam com rigidez, como se estivessem estritamente presos às marcações; os diálogos, desprovidos de naturalidade, soam declamados. "Nada tem que se assemelhe a um filme de Ford", conforme ouvi do grande e incomparável cinéfilo, pesquisador e arquivista de cinema Ivan Casassanta Dantas (1925-1995), em Belo Horizonte/MG.


No entanto, apesar de ostentar a aura de produto raro, foram duas as vezes que me vi diante de E o mundo marcha. A primeira, em 1985, graças a Ivan Casassanta Dantas. Tive o prazer de conhecê-lo nesse ano, na sala Humberto Mauro do Palácio das Artes, capital mineira. Exibia-se ali monumental mostra dedicada a David Wark Griffith. Por acaso, entre uma sessão e outra, trocamos ligeiras impressões sobre cinema. As conversas avançaram pelos outros dias. Logo nos descobrimos fãs de John Ford. Daí passamos a "trocar figurinhas" com mais intensidade, enquanto durou o evento. Neste meio tempo, convidou-me a uma sessão de cinema em sua casa, com a presença de outros aficionados. Especificamente para assistir a E o mundo marcha, em 16 mm. Infelizmente, era apenas algo perto de 60% da metragem original em cópia conseguida por empréstimo. Faltavam legendas e os diálogos estavam dublados para alguma língua da Europa oriental, conforme pressupomos. Passaríamos pela frustração de quase nada compreender. Porém, menos mal! Era um filme praticamente desconhecido de Ford — até pelo sapientíssimo anfitrião, se não me traem as lembranças. Não poderia desperdiçar a oportunidade por motivo algum. Enquanto preparava o ambiente para a projeção, Ivan informava o que sabia de E o mundo marcha: a história, o elenco estranho ao stock company fordiano, a insatisfação do diretor com o roteiro e, principalmente, a participação, entre os intérpretes, de um brasileiro: Raul Roulien[4] (1905-2000). A respeito, Glauber Rocha conta história no mínimo curiosa. Estava presente ao Festival de Montreal de 1973, durante evento que reuniu Fritz Lang, Jean Renoir e John Ford — faleceria nesse ano, em 31 de agosto. Foi apresentado por Michel Ciment — crítico e editor da revista Positif — ao diretor de E o mundo marcha. Este logo perguntou ao brasileiro: "Where is Raul?" — em referência a Roulien, a quem tratou por "Meu amigo e grande ator"[5].


O brasileiro Raul Roulien em imagem de Voando para o Rio (Flying down to Rio, 1933), de Thornton Freeland, no qual interpretou Júlio Ribeiro
Raul Roulien interpreta Carlos Girard e Henri Girard em E o mundo marcha

  
Por fim, assisti na íntegra a E o mundo marcha em 2012, graças ao canal por assinatura Telecine Cult. As lembranças da sessão de 1985 ainda estavam vivas. Assim, o estranhamento não foi tão acentuado. Porém, a impressão de que é um corpo alienígena ao universo fordiano se ampliou consideravelmente.


Conta história de longo curso, uma saga familiar iniciada em 1825, nos Estados Unidos. Em New Orleans, Louisiana, por vontade expressa do patriarca Sebastian Girard, recentemente falecido, seus herdeiros unem os interesses de uma plantation de algodão aos empreendimentos dos ingleses Warburton, representados por Gabriel (Hare). Agora, o lucrativo negócio do cotonifício será explorado de ponta a ponta, do cultivo ao processamento. O capitalismo ainda é essencialmente nacional e atravessa instante de boom. Mas Sebastian era um visionário. Antecipou-se aos movimentos dos mercados e à internacionalização dos negócios. Preparou a família para o futuro.


A leitura do testamento do patriarca Sebastian Girard


Os momentos passados no século XIX duram o necessário à união dos grupos e à explicitação de um frustrado caso de amor. O primogênito de Sebastian, Richard Girard (Tone), apaixona-se pela jovem esposa de Gabriel, apenas identificada por Mrs. Warburton (Carroll). Envolve-se até em duelo de morte para defender a honra insultada da mulher. Porém, as estritas convenções familiares impedem a evolução do affair.



Acima e abaixo: Richard Girard (Franchot Tone) e Mrs. Warburton (Madeleine Carroll) em 1825


O tempo avança e aciona a roda do destino. Os novos herdeiros serão flagrados na conturbada segunda década do século XX. A expansão internacional capitalista, inclusive dos empreendimentos Girard-Warburton — de início sustentados pelo lema "A família em primeiro lugar", segundo a vontade do patriarca fundador — revela-se frágil diante da ascensão do nacionalismo belicoso.


Mais interessante: passados 89 anos da união e do frustrado caso de amor, os bisnetos de Richard e de Mrs. Warburton retomam o interrompido sentimento experimentado pelos bisavós em 1825. Assim, Mary Warburton se casa com o novo Richard Girard. São igualmente representados por Madeleine Carroll e Franchot Tone. Não são os únicos personagens vividos pelos idênticos atores que emprestaram feições aos ancestrais diretos. Henri Girard é defendido por Raul Roulien, que também fez Carlos Girard. Da mesma forma, Sir John Warburton é personificado por Lumsden Hare que forneceu estampa a Gabriel. A permanência desses intérpretes nos desempenhos de personalidades diferentes, ainda que descendentes diretos, mereceu críticas exageradas e injustas. Aos meus critérios foi saída válida. Certamente — não se sabe se graças ao roteiro de Reginald Berkeley, por alguma liberdade de manobra de John Ford, ou imposição da Fox Film Coporation —, houve aí uma forma de se expor o permanente vigor das estruturas, no caso a herança familiar, que se mostra impávida frente às mudanças decorrentes de novas conjunturas históricas. Um jeito de dizer que tudo muda, porém, nem tanto. O presente continua, de algum modo, relacionado ao passado, principalmente às vontades dos ancestrais que costuraram a aliança Girard-Warburton.


No século XX,  o novo Richard Girard (Franchot Tone) contrai matrimônio com Mary Warburton (Madeleine Carroll)

  
Nos albores da Primeira Guerra Mundial, Richard e Mary instalam residência em New Orleans, no lar ancestral dos Girard. Enquanto isso, ramificações do empreendimento estão dispersas pela Inglaterra, França e Alemanha. O estado de beligerância internacional cindirá a sensação de unidade. Erguem-se poderes maiores que a vontade patriarcal e os interesses econômicos personalizados. E o mundo marcha revela, apesar dos pesares, tema muito caro ao diretor: a fragilidade dos indivíduos quando contrapostos ao pano de fundo da mudança histórica e coletiva. Alguns membros da firma se posicionam em campos opostos, obedientes às escolhas de seus países: França e Inglaterra contra a Alemanha. Num primeiro momento, os Estados Unidos permanecem neutros. Em 1917 tomam o partido dos aliados, para desespero de Mary Warburton. Ela sabe dos elevados custos em sangue cobrados pelo conflito, inclusive no círculo próximo de relações. Ainda mais quando, por imposição governamental, as indústrias que gerencia são readaptadas para a produção de material bélico. Uma mortandade sem igual toma os campos de batalha. Richard e o primo francês, Henri, foram incorporados às tropas e experimentam o horror. Fritz (Schumann-Heink), um von Gerhardt (conversão de Girard para o alemão), participa de operação que afunda embarcação inglesa e mata John Girard (Melton). Seu submarino também irá a pique.


Primeira Guerra Mundial: Henri Girard (Raul Roulien) e Dixie (Stepin Fetchit)

Mary (Madeleine Carroll) se despede de Richard (Franchot Tone), de partida para a guerra


1918: a Alemanha derrotada é obrigada a se submeter aos termos escorchantes do Tratado de Versalhes. Entrará em monumental crise econômica, com a maior parte da população lançada à sanha dos especuladores e à miséria. Nos anos 20, o resto do Ocidente experimenta franco otimismo econômico. A ciranda monetária distribui as cartas. Os interesses da produção são desviados para a especulação financeira nas bolsas de valores. Mary se mantém cautelosa. Richard, porém, se tornou um ganancioso magnata e usurário. Henri, depois de desilusões amorosas e da barbárie bélica, adere ao sacerdócio.


1925: Richard, Mary, Jacques Girard (Norton), Henri e Erik von Gerhardt (Denny) celebram o centenário da fusão. Tudo leva a crer em prolongado tempo de prosperidade. O personagem vivido por Franchot Tone, amparado por intermináveis ganhos financeiros, promete mundos e fundos aos negócios gerenciados pelos parentes mundo afora. A ideia é formar um monopólio via aquisição de empresas concorrentes. Assim será possível controlar os preços do algodão e derivados. Quatro anos depois acontece o crash da bolsa de valores de Nova York. Em escala global bancos quebram, capitais se evaporam, investidores, comerciantes e industriais vão à bancarrota. Richard, falido, estreita-se à contida Mary. Esperam um filho. Mais uma vez o destino do mundo, em crise econômica, é incerto. Apoiado na fé, Henri acredita em soluções no curto prazo. Mas o realista Jacques prevê a eclosão de outra grande guerra, para breve.


Mary e Richard retornam à velha mansão dos Girard, onde tudo começou. Ela implora a Deus por dias melhores. Mas o lado masculino da família sabe: somente outra guerra trará de volta os anos de esplendor. No tocante a isto, a realização é muito feliz em seu poder de antecipação. A história contada termina em 1929. Foi filmada em 1933 e lançada em 1934. Até aí, quantos poderiam supor que, brevemente, em 1939, estouraria a Segunda Guerra Mundial? O vaticínio de Jacques será incrivelmente certeiro. Já o epílogo se revestirá de um caráter premonitório sem precedentes acerca da convergência de eventos mundiais que ganharão sentido ao final dos anos 30. No começo da década, todos desejavam a paz. Os países ainda se ressentiam do morticínio provocado pela Guerra de 1914; política e economicamente não estavam prontos para outra conflagração de grandes proporções. Mesmo assim, John Ford encerra o filme com corajosa previsão sobre o reaquecimento do nacionalismo aguerrido. Na Alemanha, mostra soldados em passos de ganso desfraldando bandeiras com suásticas; Mussolini aparece mais teatral que nunca, agitando seguidores fascistas; forças do exército imperial japonês atravessam a tela em disciplinada evolução; frotas inglesas, esquadrilhas estadunidenses e batalhões de infantaria franceses e soviéticos estão de prontidão. São momentos que deixam boquiabertos quaisquer espectadores antenados com o curso da história.


Madeleine Carroll como Mrs. Warburton - 1825

  
Não se sabe de outra realização contemporânea de E o mundo marcha com tamanho poder de antevisão. Em Hollywood pelo menos não há. Os grandes estúdios, afinados aos sentimentos da nação, preferiram ignorar qualquer assunto sobre a possível retomada da escalada belicista, mesmo quando já havia iniciado. Sobre isso, é exemplar o boicote sofrido por Charles Chaplin e seu O grande ditador (The great dictator), cujas filmagens começaram em 1937. A maioria do público — inclusive políticos, jornalistas e intelectuais —, contra todas as evidências, preferiu acusar Chaplin de sabotar os interesses comerciais estadunidenses e as boas intenções nacionais de nazistas e fascistas. Preferia acreditar que não representavam ameaça, em absoluto. Muitos mantiveram a crença após setembro de 1939, inclusive quando a peça chapliniana foi finalmente lançada, em 1940. De certo modo, permaneceram confiantes até 7 de dezembro de 1941, quando os japoneses atacaram o Havaí.


Um dos motivos da insatisfação de Ford com E o mundo marcha decorre do engessamento que sofreu dos produtores. Mais: simplesmente encomendaram algo parecido a Cavalgada (Cavalcade), de Frank Lloyd, sucesso da Fox Filme Corporation um ano antes, vencedor dos Oscar de Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Direção de Arte. O roteirista é o mesmo Reginald Berkeley. Envelheceu consideravelmente a realização. Na comparação — algo sempre temerário —, o produto fordiano é acentuadamente melhor, apesar de todos os problemas e da maldição lançada pelo diretor. Fico a imaginar a indignação do irascível cineasta frente à encomenda. Logo ele, tão conhecido pela marca de pessoal originalidade estampada em todos os filmes que fez, ser praticamente obrigado a seguir as pegadas de trabalho alheio.


E o mundo marcha fracassou nas bilheterias. Acompanhá-lo exige esforço, dada a falta de dinamismo. Propositalmente, Ford contribuiu para isso. O tempo de exibição, de apenas 104 minutos, parece curto para dar conta de uma complexa saga com mais de 100 anos. Ampliá-lo, no entanto, seria arriscado. Além do mais, o sempre econômico diretor encontrou uma forma de se vingar: filmou muito além do necessário, com intenções de dificultar a montagem. É conhecido o método de trabalho de John Ford. Para evitar a intromissão indevida de editores e produtores em suas obras de cunho mais pessoal, praticamente editava o filme na câmera, registrando apenas o necessário. O resultado final estava consolidado em sua cabeça. Com E o mundo marcha agiu diferente. Além das tomadas em excesso, feriu um dos principais ordenamentos fordianos: pôs a câmera em movimento, na execução de panorâmicas e travellings. Diversificou as tomadas e os planos. Ao final, sobrou um produto retalhado, uma sucessão de episódios aparentemente incompletos e que transmitem a sensação de algo estático.


Outrossim, o fato proposital de relegar o filme ao esquecimento influenciou de igual maneira os analistas do cinema fordiano. Dos aproximados 30 livros consultados, com considerações pormenorizadas acerca dos títulos da filmografia de Ford, apenas três abordam E o mundo marcha com algum detalhamento. Sequer é comentado en passant por J. A. Place no alentado e abrangente The non-westerns films of John Ford[6]. As exceções, ao menos no que me concerne, são John Ford: The man and his films[7], de Tag Gallagher; John Ford[8], de Jean Mitry; e William K. Everson no artigo "Forgotten Ford", publicado pela revista Focus on Film[9].


E o mundo marcha é mais conhecido, inclusive pelos que não o viram, por estes fatores: 1) é o primeiro filme estadunidense aprovado pelo Código Hays ou Código de Produção. O "selo número 1" aparece logo no começo; 2) o tom pacifista de fundo religioso é claramente assumido pela narrativa, decorrência do posicionamento estadunidense em geral, também defendido pelas companhias produtoras. Por isso, atualmente, recebe muitas críticas como se assumisse compromissos isolacionistas e irresponsáveis no tocante à Primeira Grande Guerra. No entanto, aqueles que as emitem parecem desconhecer os imperativos históricos envolvidos; 3) a participação, com objetivo de fornecer alívio cômico, do talentoso comediante e ator negro Stepin Fetchit, no papel de Dixie, é francamente incômoda, dado o tom excessivamente pejorativo, racista, no tratamento do personagem. As cenas são constrangedoras.


Em 1934, o Festival de Veneza, em sua primeira edição competitiva e sob a égide dos fascistas, surpreendeu John Ford, gratificado com a Recomendação Especial por E o mundo marcha. O título ainda foi nominado à Copa Mussolini como Melhor Realização Estrangeira.


Alguns dos melhores e mais vigorosos momentos de E o mundo marcha estão nos campos de batalha. Infelizmente, a maioria dessas cenas não foi filmada por Ford. A Fox Film Corporation preferiu utilizar trechos da produção francesa Cruzes de madeira (Le croix de bois, 1931), de Raymond Bernard. Esta contribuição estrangeira à produção recebeu a maioria dos elogios de parte da crítica de então. O material foi novamente empregado por Howard Hawks em Caminho da glória (Road to glory, 1936), com ação também ambientada no contexto da Primeira Guerra Mundial.


As cenas bélicas de E o mundo marcha foram obtidas da produção francesa Cruzes de madeira (Les croix de bois, 1932), de Raymond Bernard  

  
Por fim, a parceria entre Franchot Tone e Madeleine Carroll não engrena. A atriz inglesa estreou no cinema dos Estados Unidos com E o mundo marcha. Infelizmente, sua magnética presença não encontrou correspondência à altura no apagado parceiro de expressão monocórdia.





Roteiro: Reginald Berkeley e dos não creditados Doris Anderson, William M. Conselman, Joe Cunningham, James Gleason, Llewellyn Hughes, Edward T. Lowe Jr., Henry Wales, com base em história de Reginald Berkeley. Música (não creditada): R. H. Bassett, David Buttolph, Louis De Francesco, Hugo Friedhofer, Cyril J. Mockridge. Direção de fotografia (preto e branco): George Schneiderman. Montagem: Paul Weatherwax (não creditado). Decoração: William S. Darling, Thomas Little (não creditado). Figurinos: Rita Kaufman. Gerente de unidade: Bernard McEveety (não creditado). Assistente de direção: Edward O'Fearna (não creditado). Supervisão de som: Eugene F. Grossman (não creditado). Operadores de câmera (não creditados): Paul Lockwood, John Van Wormer. Fotografia de cena: Anthony Ugrin (não creditado). Direção musical: Arthur Lange. Orquestração (não creditada): R. H. Bassett, Hugo Friedhofer, Emil Gerstenberger, Arthur Lange, Paul Van Loan. Empresa de mixagem de som: Western Electric Noiseless Recording. Tempo de exibição: 104 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2012)



[1] Por golpes da sorte, alguns títulos considerados definitivamente perdidos foram encontrados em cinematecas, coleções particulares, ajuntamentos de sótãos, porões e outros improváveis depósitos, geralmente no leste europeu, América do Sul e, caso mais recente, na Oceania: uma cópia praticamente integral e em bom estado de Upstream (1927) apareceu em 2009, na Nova Zelândia.
[2] No Brasil, o título sempre foi E o mundo marcha. Entretanto, há algum tempo o IMDbInternet Movie Database (http://www.imdb.com) — o registra como A marcha dos séculos. É difícil compreender alteração tão arbitrária. Só provoca equívocos. Outros títulos sofrem de igual problema. No caso da realização fordiana, é provável que tenha acontecido em função de dois outros filmes, da mesma época, que ganharam, no Brasil, nome semelhante, o primeiro, e idêntico, o segundo: A humanidade marcha (The world changes, 1933), de Mervyn Le Roy, e E o mundo marcha (The wet parade, 1932), do não creditado Victor Fleming.
[3] A insatisfação de Ford foi explicitada em entrevista a Peter Bogdanovich: "Gostaria de esquecer esse filme. Lutei como um louco para não fazê-lo. (...) Tentei o impossível para contornar o assunto, porém estava contratado e ao final tive que me render. Não obstante fiz tudo o que pude, pois o maldito assunto me incomodava. Realmente, foi um filme asqueroso, não havia coisa alguma a comunicar, sequer a possibilidade de comicidade. Porém — que diabo! — é isso que significa ser diretor contratado. Pagava-se bem e havia poucos impostos incidindo sobre a renda, de maneira tal que teria que engolir o orgulho e fazê-lo. Havia algumas coisas muitos boas no filme, como as cenas de combate, mas como discuti e lutei, criei a fama de ser um sujeito duro, coisa que não sou. Posso ser duro com o produtor executivo e ser mal educado com o chefe de estúdio, porém nunca com minha gente, acredito que me querem todos" (Cf. BOGDNOVICH, Peter. John Ford. 2. ed. Madrid: Fundamentos, 1983. p. 70-71).
[4] O nome verdadeiro é Raúl Pepe Acolti Gil, natural do Rio de Janeiro. Além de ator, foi cantor, roteirista, produtor e diretor. Dirigiu os nacionais O grito da mocidade (1937), vertido na Argentina para El grito de la juventud (1939), Aves sem ninho (1939), Maconha, erva maldita (1959) e Brasileiros em Hollywood (1970). Entre os filmes nos quais atuou, destacam-se: Eram treze (Eran trece, 1931), de David Howard; O último varão sobre a Terra (El último varon sobre la Tierra, 1933), de James Tinling; O homem que ficou para semente (It's great to be alive, 1933); de Alfred L. Werker; Não deixes a porta aberta (No dejes la puerta abierta, 1933), de Frank R. Strayer e Miguel de Zárraga; e Voando para o Rio (Flying down to Rio, 1933), de Thornton Freeland.
[5] Cf. ROCHA, Glauber. O século do cinema. Rio de Janeiro: Alhambra, 1983. p. 76.
[6] PLACE, J. A. The non-western films of John Ford. Secaucus, Nova Jersey: Citadel Press, 1979.
[7] GALLAGHER, Tag. John Ford: The man and his films. Los Angeles: University of California Press, 1988.
[8] MITRY, Jean. John Ford. Paris: Editions Universitaires, v. 1, 1954.
[9] EVERSON, William K. Forgotten Ford. Focus on Film, Londres, n. 6, p. 13-19, primavera 1971.