domingo, 18 de setembro de 2016

DA BROADWAY A HOLLYWOOD: ROUBEN MAMOULIAN CHEGA PARA ENQUADRAR OS 'TALKIES'

Não fosse uma edição do Festival de Veneza de começo dos anos 60, o primeiro filme dirigido por Rouben Mamoulian, Aplausos (Applause, 1929), correria o risco de estar definitiva e injustamente esquecido. Na ocasião, o crítico francês Robert Benayon o considerou como realização essencial para a existência revolucionária de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles. Aplausos é um divisor de águas, como outros títulos que abriram caminhos e se fizeram fundadores e paradigmáticos: A chegada do trem à estação da cidade (L'arrive d'un train en gare de la ciotat, 1895), dos Irmãos Lumière; Viagem à lua (Le voyage dans la lune, 1902), de Georges Méliès; O grande roubo do trem (The great train robbery, 1902), de Edwin S. Porter; O nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1915), de David Wark Griffith; Intolerância (Intolerance, 1916), de David Wark Griffith; O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potemkin, 1925), de Sergei M. Eisenstein; O cantor de jazz (The jazz singer, 1927), de Alan Crosland; No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford; Cidadão Kane; e Acossado (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard. Infelizmente, é desconhecido por muitos. Quantos cinéfilos viram ou ouviram falar desse trabalho que devolveu o cinema aos trilhos da expressão artística depois da hecatombe provocada pelo advento do cinema falado? Paradoxalmente, Rouben Mamoulian não possuía relações com o cinema. Pertencia exclusivamente ao teatro quando produtores desesperados o convocaram para auxiliá-los. Confira a importância capital de Aplausos nesta apreciação escrita em 1997.






Aplausos
Applause

Direção:
Rouben Mamoulian
Produção:
Monta Bell, Jesse L.Lasky (não creditado), Walter Wanger (não creditado).
Paramount-Famous Lasky Corporation
EUA — 1929
Elenco:
Helen Morgan, Jack Cameron, Henry Wadsworth, Joan Peers, Fuller Mellish Jr., Billie Bernard, Phyliss Bolce, Lotta Burnell, Alice Clayton, Florence Dickerson, Viola Gallo, E. Graniss, Mary Gertrude Haines, David Holt, Madge McLaughlin, May Miller, Sally Panzer, Claire Rose, William S. Stephens, A. Stewart, June Taylor, F. Thomas, Estelle Valentine, Lois Winters e os não creditados William Browning, Mack Gray, Roy Hargrave, Jack Singer.


Bastidores de Aplausos - o diretor Rouben Mamoulian brinca com Helen Morgan diante de Jean Peers



No começo era apenas uma curiosidade científica destituída de maior interesse, sem futuro algum. Dessa forma os franceses irmãos August e Louis Lumière, inventores do cinema, tentaram desestimular o prestidigitador Georges Méliès, que antevia para o invento promissoras oportunidades à arte do ilusionismo e à narração de histórias. Enxergava longe esse homem. Fez ouvidos moucos aos conselhos dos pais do cinematógrafo e abriu para a câmera as possibilidades de novos registros que não a mera representação objetiva dos fatos — como faziam mundo afora as equipes de filmagem enviadas pelos Lumière. Às fotografias animadas Méliès adicionou o ficcional, o espetacular e o lúdico. Pôs o cinema a serviço do sonho e da ilusão.


Anos mais tarde o estadunidense David Wark Griffith avança na pesquisa de novas alternativas. Amplia as capacidades narrativas do cinema ao lhe adequar uma linguagem. Liberta a câmera da fixidez, confere significados aos planos, desvenda os rudimentos da montagem. Com ele o espetáculo de Méliès passa a descortinar o dramático e se converte em moderno e insuperável meio de expressão. As convenções estabelecidas por Griffith formam uma gramática básica, imprescindível a toda e qualquer narração cinematográfica como faziam questão de frisar, sempre que podiam, os mestres soviéticos Sergei Mikhailovitch Eisenstein e Vsevolod Illarionovich Pudovkin.


Mas a sétima arte ainda não sabia falar. Essa ausência, entretanto, não a impedia de se desenvolver. Com o tempo soube conter os gestos largos, os movimentos exagerados dos atores, as muitas caras, bocas, olhares etéreos e lânguidos — recursos de início empregados para facilitar a comunicação com o público sem condições de ouvir o que se dizia em cena. Surgiram intertítulos para comentar, explicar, apresentar e traduzir. Pode-se afirmar, sem exagero: na década de 20 o cinema estava formado como adulto meio de expressão artística em sua melhor acepção, apesar de se expressar silenciosamente.



Acima e abaixo: Helen Morgan no papel de Kitty Darling

  
Em 1927 a Warner Brothers — então uma pequena companhia produtora estadunidense às portas da falência — arrisca todas as fichas e ensina o cinema a falar. Com muito sucesso lança O cantor de jazz (The jazz singer), dirigido por Alan Crosland e estrelado por Al Johnson. Porém, os primeiros anos dos talkies — assim os estadunidenses se referiam aos filmes falados — não significaram de imediato uma revolução, mas o contrário. Pode-se dizer, descontado o exagero da comparação, que nos primórdios do sonoro houve uma involução aos tempos pré-Griffith. A capacidade narrativa refluiu ao período dos Lumière. Os cineastas e produtores, embasbacados com a novidade e desconhecendo as possibilidades artísticas e dramáticas do som, desaprenderam também a valorizar o silêncio. Tudo tinha que ter som reproduzido, se possível nas formas as mais objetivas e reais, sejam pessoas, animais, vegetais, coisas e fenômenos. Na busca pela máxima fidelidade microfones eram espalhados por todo canto: nos vasos de plantas, sob mesas, entre as vestes etc. Os atores os procuravam quando falavam. Também era importante que o público percebesse as bocas em movimento. Tudo isso provocava, não raro, situações involuntariamente cômicas e constrangedoras. As câmeras pesadas e barulhentas de então tiveram os movimentos limitados quando foram trancafiadas em cabines de vidro à prova de som — verdadeiros fornos que assavam operador e diretor. Isso, mais o modo de se fazer o registro sonoro, transformava o cinema numa sucessão de fotografias animadas e posadas, algo muito próximo do teatro filmado, se já não fosse isso — o musical Cantando na chuva (Singin' in the rain, 1952), de Stanley Donen e Gene Kelly, brincou muito bem com a situação. Diante dessas circunstâncias, valorizaram-se as tomadas em interiores. Filmagens externas exigiam operações as mais complicadas. Prova disso é a filmografia de John Ford. Realizou o último western — Três homens maus (Three bad men) — antes do advento do som em 1926 e só retornou ao gênero após 13 anos, para revolucioná-lo por completo em uma narrativa mista de epopeia e intimismo: No tempo das diligências (Stagecoach, 1939).


O retrocesso foi imediatamente percebido, principalmente por dois tarimbados produtores: Jesse L. Lasky e Walter Wanger. Juntos procuraram ajuda para devolver o cinema sonoro às trilhas do dinamismo narrativo e livrá-lo das armadilhas do teatro filmado. Paradoxalmente, encontraram a solução fora do ambiente estritamente cinematográfico, mais exatamente na trincheira à qual davam combate. Buscaram em Nova York o auxílio de Rouben Mamoulian, um tarimbado profissional do teatro. Este "russo de nascimento, de família armênia"[1], formou-se na arte da representação nos palcos de seu país e se lapidou em Londres. Da capital inglesa embarcou definitivamente para os Estados Unidos e se radicou na Broadway, onde conseguiu consagração com montagens originais de Oklahoma e Porgy and Bess.


Perspicaz e audacioso, Mamoulian sabia das diferenças entre cinema e teatro. Lasky e Wanger lhe ofereceram, a princípio, o posto de diretor de sequências dramáticas de um projeto em andamento. Diante da recusa, confiaram-lhe a responsabilidade pela realização de todo o filme. Aplausos é o nome da produção, um divisor de águas na história do cinema, tão importante como A chegada do trem à estação da cidade (L'arrive d'un train en gare de la ciotat, 1895), dos Irmãos Lumière; Viagem à lua (Le voyage dans la lune, 1902), de Georges Méliès; O grande roubo do trem (The great train robbery, 1902), de Edwin S. Porter; O nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1915), de David Wark Griffith; Intolerância (Intolerance, 1916), de David Wark Griffith; O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potemkin, 1925), de Sergei M. Eisenstein; O cantor de jazz; No tempo das diligências; Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles; e Acossado (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard.


Kitty Darling (Helen Morgan)


Mas, que injustiça! Qual crítico, qual cinéfilo, qual estudioso de cinema terá ciência, nos dias de hoje, do significado de Aplausos e da importância de Rouben Mamoulian para o renascimento do cinema? Certamente, muito poucos.


Logo que chegou a Hollywood, Mamoulian assumiu compromisso "contra o cinema do tipo 'teatro enlatado'. (...). Julgava que a câmera podia e devia mover-se, apreciava a importância do close-up na ênfase dramática, e combatia a ideia predominante de que devia ser mostrada a fonte de todos os sons. Em sua opinião, a câmera era mais do que um observador passivo enquanto os atores recitavam falas — e, igualmente, que ao diretor cabia mais do que meramente ajudar os atores a pronunciar melhor os diálogos. Cumpria-lhe auxiliar a plateia a descobrir o significado dramático da cena, selecionar com a câmera o importante, tornando-a viçosa e iluminadora graças à imaginação e inventividade das imagens"[2].


No palco, à frente, Helen Morgan no papel de Kitty Darling - Queen of  Hearts

  
Aplausos é o primeiro filme de Mamoulian, o primeiro que Hollywood rodou inteiramente na Costa Leste dos Estados Unidos e, também, o primeiro a fazer uso do som direto em tomadas externas, no caso as ruas de Nova York onde se desenrola a ação. Conta a história de Kitty Darling (Morgan), publicamente conhecida como "Queen of Hearts" (rainha dos corações), dançarina do teatro burlesco que se sacrifica pela felicidade da filha April (Peers) de quem espera um futuro melhor. A menina é educada em convento, apartada de qualquer ligação com a mundanidade. Quando termina os estudos volta para o convívio materno. Acontece o choque de valores. Apesar de amar a mãe, April não vê com bons olhos o mundo dos palcos. Considera-o pecaminoso e desregrado. Para piorar, entra em conflito com Hitch Nelson (Mellish Jr.), apelidado de "Bad Boy", explorador e amante de Kitty, misto de vigarista e empresário teatral. A atriz está velha e à beira da decadência. Continua em atividade por obra e graça de "Bad Boy". O malandro agora está de olho nas possibilidades artísticas e na juventude da enteada de quem força aproximação. Mas é sempre defenestrado. Como último recurso lança mão da chantagem. Vale-se da influência que tem no meio artístico e empresarial para interromper a carreira de Kitty e obrigar April a substituí-la. Recusada por outros agentes e produtores devido à idade, a veterana dançarina comete suicídio com o claro propósito de libertar a filha, agora enamorada de Tony (Wadsworth), honesto marinheiro.


April Darling (Jean Peers) com o namorado Tony (Henry Wadsworth)


Aplausos consegue a junção dinâmica de música, imagens, sons e ação dramática. É um filme total. Mamoulian recorreu às silenciosas rodas pneumáticas para devolver a mobilidade à câmera. Ampliou o realismo do som ao romper com a unidimensionalidade que o cercava quando recorreu à banda de gravação de pista dupla. Como todo pioneiro teve que remar contra conceitos e ideias cristalizadas sobre a maneira considerada correta de filmar. Atritou-se com vários membros da equipe, que julgavam a realização tecnicamente impossível.


Robert Benayon, por ocasião da redescoberta de Aplausos num dos festivais de Veneza do começo dos anos sessenta, lembrou que é graças a esse filme que existe Cidadão Kane[3]. Isto porque Mamoulian — com a ajuda indispensável de George Folsey, craque da fotografia e da câmera — conseguiu sequências extraordinárias em profundidade de campo. Também introduziu recursos narrativos hoje considerados convencionais, como a elipse. Fez tomadas labirínticas dos bastidores do teatro, para mostrar toda a efervescência de um mundo que transcorre longe da visão dos palcos. Com o som, atribuiu dramaticidade ao vento, à chuva e a outros fenômenos naturais. Sem esquecer que conseguiu efeitos sonoros que pareciam impossíveis com a conversão e a sincronização. Orson Welles, mais tarde, ampliou todos esses recursos quando chegou a sua vez de também reinventar o cinema.


Kitty Darling (Helen Morgan) na prestação de contas com o passado


Hoje, a modernidade e permanência de Aplausos estão firmadas nestes momentos de particular eficácia: o close-up de Kitty Darling, logo no começo, quando recorda os dias da juventude; a sequência do nascimento de April, nos bastidores, com a câmera evoluindo com desenvoltura por todo o espaço, avançando e recuando, subindo e descendo; o enquadramento focado nas pernas de Kitty e dos homens que a encontram quando estava a caminho de casa ― solução que resolveu problemas de sincronização sonora dos diálogos em filmagem externa; o romance entre April e Tony no alto de um arranha-céu e a revelação da cidade em ebulição a partir do ponto de vista do casal — tomada que influenciou, anos depois, alguns musicais dirigidos por Vincente Minnelli, Stanley Donen e Charles Walters sobre marinheiros de folga em Nova York; e, no fim, a câmera se aproximando do rosto sorridente de Kitty Darling estampado num cartaz, diante do qual April e Tony, abraçados, parecem receber a benção materna.


April Darling (Jean Peers) e Kitty Darling (Helen Morgan)

April (Jean Peers) e Tony (Henry Wadsworth) simbolicamente abençoados por Kitty (Helen Morgan)


Também merece destaque a temática adulta de Aplausos. A história é cruel. Tanto que algumas passagens, bastante realistas para a época, foram amenizadas por imposição do Código de Produção. É exemplo de que o cinema estadunidense nem sempre encontrou correspondência no escapismo cor-de-rosa que invariavelmente o envolve. Se comparado a muitas das pueris produções recentes que apresentam temáticas similares, o filme de Mamoulian vence de goleada.





Produção executiva: Adolph Zukor, Jesse L. Lasky. Roteiro: Garrett Ford, baseado em história de Beth Brown. Operador de câmera e direção de fotografia (preto e branco): George J. Folsey. Montagem: John Bassler (não creditado). Assistente de direção: Otto Brower (não creditado). Segundo assistente de direção: Ray Cozine (não creditado). Mixagem de som: C. A. Tuthill (não creditado). Gravação de som: Ernest Zatorsky (não creditado). Segundo operador de câmera: George Hinners (não creditado). Apresentação: Jesse L. Lasky, Adolph Zukor. Tempo de exibição: 80 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1997)




[1] EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas. São Paulo: Global, 1977. p. 271.
[2] KNIGHT, Arthur. Uma história panorâmica do cinema: a mais viva das artes. Rio de Janeiro: Lidador, 1970. p. 143.
[3] BENAYON, Robert. Reesamen de Mamoulian. Positif. Paris, n. 64-65, 1964. p. 60.