domingo, 7 de agosto de 2016

UM INCOMUM, ENVOLVENTE E ANTICLIMÁTICO ‘WESTERN DE SUGESTÃO’ DE JACQUES TOURNEUR

Jacques Tourneur começou a dirigir nos anos 30, na França, porém teve o talento evidenciado graças ao produtor Val Lewton, nos Estados Unidos. Dirigiu filmes que marcaram época para a pequena RKO Radio; exemplos maiores do ‘terror de sugestão’. Diante da falta de recursos que permitissem a explicitação do sobrenatural, valorizou climas, ambientes e atmosfera. Sangue de pantera (Cat people, 1942), A morta-viva (I walked with a zombie, 1942) e O homem-leopardo (The leopard man, 1943) ainda causam frisson pela capacidade de provocar a imaginação do público. Daí em diante, o cinema de Tourneur foi marcado pela característica de ceder ao espectador a tarefa de complementar lacunas propositalmente deixadas nas histórias. Disso o anticlimático western Paixão selvagem (Canyon passage, 1946) é exemplo bem acabado. Pouco há em comum entre a realização e exemplares mais tradicionais do gênero. No lugar dos ensolarados vales, desertos e planícies, a ambientação é uma verdejante floresta no interior do Oregon. A ação livre e solta é, pode-se dizer, escamoteada. Por outro lado, destacam-se os personagens naquilo que são, fazem e pensam. Conquistar o Oeste não é o que mais importa, mas as disposições e capacidades individuais de aceitar desafios impostos pelos elementos geográficos e humanos. Poucas realizações valorizam tanto o sentido de pertencimento a uma comunidade em formação e os compromissos daí decorrentes como Paixão selvagem. Sem esquecer que, dada a época da produção, também inova na abordagem da questão indígena. A apreciação a seguir é de 1992.







Paixão selvagem
Canyon passage

Direção:
Jacques Tourneur
Produção:
Walter Wanger
Universal Pictures
EUA — 1946
Elenco:
Dana Andrews, Brian Donlevy, Susan Hayward, Patricia Roc, Ward Bond, Hoagy Carmichael, Fay Holden, Stanley Hidges, Lloyd Bridges, Andy Devine, Victor Cutler, Rose Hobart, Halliwell Hobbes, James Cardwell, Onslow Stevens, Tad Devine, Denny Devine e os não creditados Erville Alderson, Richard Alexander, Harlan Briggs, Roy Bucko, Spencer Chan, Jack Rube Clifford, Chester Clute, Tex Cooper, Ben Corbett, Victor Cox, Jack Curtis, Tex Driscoll, Eddie Dunn, Frank Ferguson, Janet Ann Gallow, John George, Karl Hackett, Sherry Hall, Daral Hudson, Jack Ingram ,Willy Kaufman, Jack Kenny, Walter Lawrence, Rex Lease, Joseph P. Mack, Mathew McCue, Francis McDonald, Kansas Moehring, Charles Morton, Mary Newton, William H. O'Brien, Virginia Patton, Ralph Peters, Dorothy Peterson, 'Snub' Pollard, Bob Reeves, Jack Rockwell, Gene Roth, Sam Savitsky, Wallace Scott, Allen D. Sewall, Lucile Sewall, Harry Shannon, Tom Smith, Count Stefenelli, Ray Teal, Peter Whitney, Chief Yowlachie.



O diretor Jacques Tourneur.
À esquerda, com a atriz Patricia Roc - intérprete de Caroline Marsh - nos bastidores de Paixão selvagem


Reza o dito popular: tal pai, tal filho. Literalmente a expressão é absolutamente verdadeira nas considerações à francesa família Tourneur. O cineasta Jacques, filho do diretor Maurice, iniciou carreira como assistente do pai, de quem aprendeu as artes do ofício. Maurice é o célebre realizador de A mão do diabo (La main du diable, 1943) e aproximadamente cem outros títulos trazidos à luz no decorrer de uma trajetória que se estende de 1913 a 1948, consolidada na França e nos Estados Unidos.


Jacques não foi tão produtivo em comparação ao pai. Entre curtas e longas dirigiu cerca de 55 filmes para cinema, desde que se lançou na atividade, em 1931, encerrando-a em 1966. A partir de 1956 teve mais oportunidades na televisão, à qual dirigiu episódios de séries as mais diversas. Na França, havia feito apenas quatro filmes — Tout ça ne vaut pas l'amour (1931), Toto (1933), Pour être aimé (1933) e Les filles de la concierge (1934) — quando, em 1935, despertou a atenção de Val Lewton, então a serviço da Metro-Goldwyn-Mayer. Foi chamado aos Estados Unidos para colaborar nas sequências de multidão e do fluxo revolucionário de A queda da Bastilha (A tale of two cities, 1935)[1], de Jacques Conway e do não creditado Robert Z. Leonard. Encerrada a tarefa, permaneceu em Hollywood e na MGM. Realizou 20 curtas para a companhia, mais os longas They all come out (1939), Nick Carter — super detetive (Nick Carter, master detective, 1939), Nick Carter nos trópicos (Phantom raiders, 1940) e Doctors don't tell (1941).


Entretanto, a história do cineasta Jacques Tourneur de fato começa — se assim pode ser dito — quando Val Lewton lhe atravessa novamente o caminho, desta vez como gerente da unidade de produção de filmes de terror da pequena RKO Radio. A empresa não dispunha de grandes recursos como a MGM. Precisava economizar em caracterizações e efeitos especiais. Contratado para realizar uma pequena série de filmes ambientados nas sendas do fantástico, Tourneur deveria se virar com orçamentos apertados. Em compensação, teria ampla autonomia, o que significava permissão para criar livremente. E criatividade não lhe faltava. Se não havia dinheiro para explicitar o horror, valorizaria ambientes, climas, atmosfera e, principalmente, o poder de sugestão permitido pelo cinema. Assim agiu com os três filmes concebidos para a unidade de Lewton. Por mais que o cinema contemporâneo tenha banalizado as dimensões do sobrenatural pela recorrência às mais explícitas encenações, os filmes de Tourneur ainda são referências e causam frisson, exatamente pela capacidade de sugerir aquilo que não é mostrado. Confirmam-no as revisões contemporâneas de Sangue de pantera (Cat people, 1942), A morta-viva (I walked with a zombie, 1942) e O homem-leopardo (The leopard man, 1943).


Não é exagero afirmar que a "escola" de Lewton lapidou a carreira de Jacques Tourneur. Bancado por outras companhias em novas investidas no sobrenatural, obteve sucesso com o britânico A noite do demônio (Night of the demon, 1957) e a comédia macabra Farsa trágica (The comedy of terrors, 1963). Esta foi filmada nos cenários que tanto serviram às ousadas experimentações de Roger Corman na paupérrima American International Pictures do produtor Samuel Z. Arkoff e, certamente, teve mais contenção de recursos que os filmes da unidade de Lewton.


Do terror de sugestão ao cinema noir — com personagens ambíguos, realidade em dissolução, ambientes escuros e tramas marcadas pela incerteza —, a carreira de Tourneur cumpriu praticamente um percurso natural. Idílio perigoso (Experiment perilous, 1944), Expresso para Berlim (Berlin express, 1948), A maleta fatídica (Nightfall, 1957), e, acima de tudo, o exemplar Fuga ao passado (Out of the past, 1947) engrandecem o gênero. Memoráveis também são as incursões no território da ação franca e aberta — tão caracteristicamente estadunidense —, aplainado pela perspectiva racionalista de um francês: as peripécias de corsários — O gavião e a flecha (The flame and the arrow, 1950) e A vingança dos piratas (Anne of the Indies, 1951) — mais os westerns, dos quais Paixão selvagem é o primeiro. Seguem-se O testamento de Deus (Stars in my crown, 1950), O cavaleiro misterioso (Stranger on horseback, 1955), Choque de ódios (Wichita, 1955) e Pelo sangue de nossos irmãos (Great day in the morning, 1956).


Atualmente, gosto muitíssimo de Paixão selvagem. Mas nem sempre foi assim. Era muito novo ao tentar vê-lo pela primeira vez. Contava treze anos, em 1969, quando a televisão o exibiu. Sabia que se tratava de produção embalada em luxuoso Technicolor e, na época, as transmissões em cores estavam, ainda, distantes. Vencido este fator, fui derrotado pelo andamento narrativo. Habituado ao western mais tradicional — transcorrido em vales pedregosos e poeirentos, ensolarados desertos e planícies —, estranhei uma realização que envolvia os personagens numa verdejante floresta no interior do Oregon. Para piorar — em se tratando da idade — percebia o escamoteamento da ação física, substituída por observações psicológicas, comentários sobre a condição humana e a exaltação da vida comunitária. Outra oportunidade surgiu em 1976, também na TV, em plena madrugada avançada. Dessa vez o sono, reforçado pela horrível dublagem, impediu a apreciação. Por fim, vi a fascinante e incomum realização de Tourneur em 1992. Mais uma vez a televisão se oferecia, porém, com cores e som original. A disposição para aceitar com boa vontade um western em tudo diferente das convenções também se apresentava.


Acima e abaixo: Logan Stuart, interpretado por Dana Andrews


Incomum é o mínimo a se dizer de Paixão selvagem. De certo modo a narrativa é influenciada pelos mesmos elementos que caracterizam as realizações de Tourneur para Val Lewton. É um western valorizado pela ambientação e personalidades. Os tipos que a percorrem são poliédricos, dotados de almas; comunicam-se por gestos e sensações. Ficam de lado o extravasamento aberto da ação física ou os grandes arroubos. Pode-se dizer que é totalmente anticlimático. Por mais que o realizador estivesse já impregnado pelos ensinamentos da cartilha hollywoodiana, a sua maneira de perceber o mundo permaneceu fiel aos aspectos contemplativos e discursivos do racionalismo francês. Isso não significa que os personagens se percam em falação; muito ao contrário. O laconismo predomina. Poucas palavras bastam para expor características psicológicas e relacioná-las à ambientação de exuberante colorido que fornece contexto à história. Poucas vezes o entorno geográfico contou tantos pontos favoráveis em um filme.


Paixão selvagem é a primeira experiência de Jacques Tourneur com a cor. O diretor de fotografia é o mestre Edward Cronjager. Preenche os planos com luzes e sombras na matização de ambientes, situações e indivíduos. O colorido preserva sempre um toque de mistério, pronto a impedir que situações e personagens se revelem de imediato. Claro! Tourneur nunca se entregou à facilidade das aparências reveladas à primeira mirada.


A ação se passa no Oregon, em Jacksonville, pequena cidade essencialmente mineira. Porém, em momento algum se percebem mineiros trabalhando. O comércio de madeira é outra atividade de relevo, mas madeireiros em ação também não são vistos. Os personagens clássicos dos westerns — cowboys e pistoleiros — certamente não são encontrados. Mas há a comunidade em formação, enriquecida pelos paradoxos decorrentes das idiossincrasias que fornecem substâncias aos componentes da fauna humana aí assentada. É um dos mais ricos e diversificados ajuntamentos humanos percebidos num drama de fronteira.


Jacksonville é pequena mas dinâmica. Está em permanente ebulição e respira autenticidade. Oferece variadas possibilidades de desenvolvimento narrativo. Por outro lado, também não é um mundo fechado, apartado de contextos sociais mais amplos. Mesmo distante dos grandes centros de tomada de decisão, os moradores se sentem integrados aos esforços de um país em expansão, animado pela confiança nas promessas do progresso. Do leste chegam notícias da construção de uma ponte sobre as cataratas do Niagara. Enquanto isso, a localidade sequer é servida por diligências. Faltam estradas. Comunicações e abastecimentos dependem de cavalos e lombos de burro. As vias de acesso são perigosas, mais por causa de salteadores que propriamente de índios insatisfeitos à espreita. Os primeiros habitantes da terra ainda estão, de algum modo, integrados às experiências vitais que sempre conheceram. Observam os intrusos com estupefação, desconfiados de hábitos como a propriedade privada de extensas áreas territoriais nas quais se erguem moradias permanentes.

Logan Stuart (Dana Andrews) - à direita - com a família Dance: Mrs. Dance (Dorothy Peterson), Asa (Tad Devine), Bushrod (Denny Devine) e Ben (Andy Devine)


Para um western de meados dos anos 40, Paixão selvagem inova ao retratar os índios, principalmente nos interesses que os motivam. A deixa para tanto é fornecida pelo agricultor Ben Dance (Devine). Por mais que a presença dos peles-vermelhas suscite desconfiança e pavor junto aos colonizadores, há a salutar e adiantada vontade de humanizá-los e compreendê-los. Ben vive fora da cidade, com a esposa (Peterson/não creditada) e filhos menores Asa (Tad Devine) e Bushrod (Denny Devine)[2]. Sabe que a terra foi tomada aos índios e estes, certamente, disso se ressentem. Alega disposição para defender o pedaço de chão no qual se instalou, mas reconhece o direito dos primeiros ocupantes à resistência. Inclusive sustenta para a esposa e demais colonos — como se falasse em nome do diretor — os reais motivos da animosidade: a chegada de novas gentes às áreas fronteiriças não os aflige, mas a apropriação privada da terra e as edificações permanentes, elementos desconhecidos de seus modos de vida.


Paixão selvagem tem muitas tramas e subtramas. A narrativa, pausada e desenvolvida sem pressa, é enriquecida com triângulos amorosos, ataques traiçoeiros, julgamentos sumários — à moda da informal justiça popular —, brigas a socos, corrupção, mutirão, ataque de índios, jogos de cartas, assassinatos, começos e recomeços. A produção é impecável, a começar pela direção de fotografia de Edward Cronjager e pela trilha musical do não creditado Frank Skinner — à qual se juntam quatro composições de Hoagy Carmichael interpretadas pelo próprio: Rogue River Valley, I'm gettin' married in te mornin' (em duo com Andy Devine), Silver saddle e Ole buttermilk sky, composta em parceria com Jack Brooks. Aliás, Carmichael integra o elenco na pele do pequeno comerciante Hi Linnet, permanentemente vestido a rigor. Se estivesse trajado na cor negra, seria um similar do agente funerário conforme a imagem consolidada pelo cinema. O personagem também é uma espécie de menestrel — sempre cantarolando com o acompanhamento de uma rebeca — e somente se desloca sobre uma mula. Além do mais, é um bisbilhoteiro. Passa as horas espreitando os moradores em seus atos e movimentos. Quando questionado a respeito, alega possuir tempo para isso, pois não é muito exigido pelo pequeno negócio que explora.

Hi Linnet, interpretado por Hoagy Carmichael


A presença de Carmichael é uma das boas atrações de Paixão selvagem. Talentoso, apareceu pouco no cinema, mas foi um dos melhores atores característicos do seu tempo. Impossível esquecê-lo como o pianista Cricket de Uma aventura na Martinica (To have and have not, 1944), de Howard Hawks; Butch Engle de Os melhores anos de nossas vidas (The best years of our lives, 1946), de William Wyler; e Thomas George Braken de A família do gênio (Belles on their toes, 1952), de Henry Levin, para ficar apenas com esses exemplos.


No quesito interpretações, a realização apresenta bons e equilibrados valores, em desempenhos próximos do natural. Conferem ao filme uma bem vinda aura de autenticidade. No geral, exageros não são percebidos, mas apenas o transcorrer da vida em seus muitos momentos corriqueiros. É a regra e não a exceção que conta. Tais qualidades conferem sentido ao elogio dirigido por Jacques Lourcelles a Tourneur: é o poeta na normalidade, capaz de extrair o sublime dos chamados tempos mortos, nos quais nada de extraordinário acontece. Por outro lado, Brian Donlevy, Susan Hayward, Lloyd Bridges, Andy Devine, Stanley Ridges, Rose Hobart, Halliwell Hobbes, Patricia Roc, Dorothy Paterson e outros — em pequenas ou grandes participações — não representam indivíduos chapados, totalmente bons ou absolutamente maus. São matizados — como todo ser humano —, com seus defeitos e qualidades. A exceção, certamente, é o excelente Ward Bond na caracterização do grandalhão e assustador Honey Bragg. Provavelmente, é o único papel do ator como bandido de fato. Chega a ser a personificação da maldade. É tão diferenciado que sequer reside na cidade, mas na floresta, solitário, sem estabelecer contatos corriqueiros com os demais moradores. Refratário e antissocial, está permanentemente pronto para gerar discórdias. De suas más ações — provocando, roubando ou matando gratuitamente — decorre o extraordinário: uma sucessão de acontecimentos que interrompe o fluir tranquilo, contínuo e constante do cotidiano em Jacksonville. Termina envolvendo todos os habitantes do lugar em atos de resultados drásticos, que reordenam a face da comunidade e obrigam a consolidação de novos pactos e compromissos — como ocorre nas melhores tragédias.

Ward Bond como Honey Bragg


O roteiro de Ernest Pascal, baseado na novela Canyon passage, de Ernest Haycox[3] — originalmente publicada no The Saturday Evening Post —, está apoiado no cordato, pragmático e centrado Logan Stuart, talhado sob medida para Dana Andrews. Outrora caçador, agora é empreendedor paciente. É proprietário de um armazém geral conduzido com alguma displicência aventureira e uma companhia de transporte em lombo de burros. Relaciona-se com praticamente todos os moradores da cidade. Aparentemente está afetivamente interessado em Caroline Marsh (Roc), hóspede da família Dance desde que perdeu os pais em contendas com os índios. Porém, Logan conduziu de Portland para Jacksonville, durante alguns dias, a jovem Lucy Overmire (Hayward), noiva do amigo George Camrose (Donlevy). Este é o banqueiro local. No entanto, é pouco cioso de suas funções: é jogador compulsivo, sempre fadado a perder somas significativas nas partidas, inclusive depósitos de clientes. O vício incurável de Camrose provocará tumultos e abalará a relação amorosa com Lucy. Apesar da boa aparência, fineza no trato e relativa integração aos mores da comunidade, o personagem é tão ou mais dissoluto que Honey Bragg, cujas ações violentas e impensadas arrastarão os índios para a guerra. Logan, por pressão do clamor de um grupo social carente de diversão, terá com Bragg — de quem é claramente um desafeto — uma das mais violentas contendas a soco exibidas pelo cinema da época. Tourneur, pelo visto, exigiu realismo e foi atendido. Tanto que os atores, segundo consta, necessitaram de curativos e até de alguns remendos na epiderme.

Susan Hayward como Lucy Overmire

Logan Stuart (Dana Andrews) entre Lucy Overmire (Susan Hayward) e Caroline Marsh (Patricia Roc)


A sutil e pausada descrição do cotidiano de Jakcsonville contém os pontos altos de Paixão selvagem. Hi Linnet marca presença em quase todos, cantarolando enquanto cavalga, ou vigiando, como aplicado bisbilhoteiro, os moradores. Nada escapa de seu aguçado poder de observação. Mas o melhor dessas relações comunitárias é a junção de esforços em mutirão para benefício de um jovem casal, com vistas à construção de uma casa e preparo do solo para cultivo. Provavelmente, nessa sequência Peter Weir se inspirou para planejar tomadas similares no erguimento coletivo de um celeiro em A testemunha (Witness, 1985). Durante o desenrolar dessa ação, explicitam-se as diferenças entre Logan — sempre focado e ciente de que o essencial da vida é a consolidação de relações sólidas com o grupo de pertencimento — e o imediatista George Camrose. Aquele se envolve de todo no esforço solidário de construção. O outro apenas marca presença, bem vestido como sempre. Durante o desenrolar da atividade, prefere a sombra de uma árvore na companhia desconfiada de Lucy, enquanto projeta um futuro desprovido de bases sólidas. Logan aceita os desafios do presente. George prefere colher os frutos sem se envolver com o trabalho de cultivá-los. Um está ajustado aos códigos da fronteira em expansão e às incertezas do processo. O outro prefere a estabilidade permitida por um centro consolidado e, nesse jogo, a embrionária Jacksonville só significa fastio e insegurança. Logan está preparado para enfrentar os reptos psicológicos da aventura rumo ao Oeste, a terra da promissão — pois está disposto a amanhá-la. George despreza o esforço e a racionalidade. A eles prefere o imediatismo cheio de riscos e os golpes da sorte.

George Camrose (Brian Donlevy) e Lucy Overmire (Susan Hayward)


A armação dramática de Paixão selvagem à maneira do cinema de sugestão de Tourneur lembra, sempre, o fluxo constante da vida, inclusive os sacrifícios cobrados ao longo do processo. No entanto, aos revezes e às perdas — informa o cineasta — todos estão habituados, até os espectadores. As derrotas são partes do dado ordinário do viver. Existir é morrer, perder e cair. Tudo isso é o banal. O importante é o extraordinário da superação, o seguir em frente. Alguns personagens perecem durante os conflitos. Mas a câmera não vê necessidades de mostrá-los em seus derradeiros instantes. Em geral, morte alguma é vista ao longo de todo o filme. O espectador saberá, pelas informações que recebe durante o avançar da narrativa, que alguém simplesmente deixou de fazer parte do grupo. É o escamoteamento que tanto me incomodou quando tentei assistir ao filme pela primeira vez. Importam a continuidade e celebração da existência coletiva. Certamente, em seus periódicos rituais de celebração e renovação da vida, a comunidade cultuará de algum modo a memória dos caídos. É o sentido que parece ser tirado da confiante cavalgada de Logan e Lucy, no epílogo, rumo a um objetivo que, ao fim e ao cabo, reverterá em prol da continuidade de Jacksonville. O espírito progressista da conquista nisto implica: continuar! É um filme impregnado de otimismo. Os personagens de Andrews e Hayward se revelam almas gêmeas no transcorrer das alterações comunitárias. Um rearranjo também aguarda Caroline Marsh. Ela, por almejar um tipo de vida mais gregário, descobriu que não estava plenamente ajustada aos inquietos anseios de Logan. Melhor para Vane Blazier (Cutler), que preenche os requisitos para completar os desejos da jovem agregada dos Dance.

Brian Donlevy no papel de George Camrose


No tocante aos aspectos que conferem autenticidade histórica ao filme, o combate aos índios não se faz a cavalo, mas a pé, em grupos pequenos, que esmiúçam com cuidado cada canto da mata. Os nativos correspondem no mesmo diapasão. Os oponentes se acercam cuidadosamente, entre as árvores que lhes servem de escudo e sem muito estardalhaço. Logan e companheiros não usam coldres e cinturões. As armas estão presas aos cintos, à frente do corpo. Pode não parecer muito elegante em comparação com as convenções moldadas pelo western cinematográfico, mas a Jacques Tourneur importava reconstituir com o máximo de fidelidade os costumes como de fato eram. Neste ponto cabe acrescentar que os índios são representados por autênticos remanescentes das tribos que habitavam a região de Jacksonville.


Paixão selvagem é o único filme hollywoodiano com participação da atriz britânica Patrícia Roc. Terminada a guerra na Europa, regressou ao país de origem e consolidou carreira de relativa popularidade nas produções inglesas.


Em 1947, os compositores Hoagy Carmichael e Jack Brooks — pela autoria de Ole buttermilk sky — foram indicados aos prêmios Oscar de Melhor Música e Melhor Canção. Perderam para Zip-a-dee-doo-dah, de Allie Wrubel e Ray Gilbert, composta para Canção do Sul (Song of the South, 1946), produção da Walt Disney Productions que combina ação viva com desenho animado, sob a direção de Wilfred Jackson e Harve Foster.




Roteiro: Ernest Pascal, com base na novela de Ernest Haycox, Canyon passage, originalmente publicada no The Saturday Evening Post. Produção associada: Alexander Golitzen. Música: Frank Skinner (não creditado). Direção de fotografia (Technicolor): Edward Cronjager. Montagem: Milton Carruth. Direção de arte: John B. Goodman, Richard H. Riedel. Decoração: Russell A. Gausman, Leigh Smith. Figurinos: Travis Banton. Penteados: Carmen Dirigo. Maquiagem: Jack P. Pierce. Assistente de direção: Fred Frank. Direção de som: Bernard B. Brown. Técnico de som: William Hedgcock. Fotografia especial: David S. Horsley. Dublê para Lloyd Bridges: Calvin Spencer (não creditado). Segunda câmera: Henry Cronjager Jr. (não creditado). Direção musical: Frank Skinner. Músico: Ethmer Roten (não creditado). Consultoria associada de Technicolor: William Fritzsche. Direção de diálogos: Anthony Jowitt. Consultoria de Technicolor: Natalie Kalmus. Apresentação: Walter Wanger. Direção de pesquisa (não creditada): Nan Grant, Jean Kenney. Estúdio de mixagem de som: Western Electric Recording. Tempo de exibição: 92 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1992)



[1] EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas. São Paulo: Nacional, 2002. p. 718.
[2] Filhos de fato de Andy Devine, creditados como The Devine Kids.
[3] O curioso é que canyon algum é mostrado no filme.