domingo, 31 de janeiro de 2016

LINA WERTMÜLLER COMEÇA A NAUFRAGAR NA ESTÉTICA DO EXAGERO

Desde Mimi, o metalúrgico (Mimi metallurgico ferito nell'onore, 1972) a carreira da diretora Lina Wertmüller despertava a atenção. Com exceção de Tutto a posto e niente in ordine (1974) — não exibido comercialmente nos cinemas brasileiros —, ofereceu em sequência um conjunto de títulos no mínimo criativos e instigantes: Amor e anarquia (Film d'amore e d'anarchia, ovvero 'stamattina alle 10 in via dei Fiori nella nota casa di tolleranza..., 1973), Por um destino insólito (Travolti da un insolito destino nell'azzurro mare d'agosto, 1974), Pasqualino Sete Belezas (Pasqualino Settebellezze, 1975) e Dois na cama numa noite de chuva (La fine del mondo nel nostro solito letto in una notte piena di pioggia, 1978). Porém, os filmes seguintes confirmam a perda continuada de talento. Amor e cíume (Fatto di sangue fra due uomini per cause di una vedova: si sospettano movementi polici, 1978) é dos piores. Perdeu a mão inclusive na direção de atores. Sophia Loren, Giancarlo Giannini e Marcello Mastroianni estão ao Deus dará numa história de ódios acumulados e vinganças à espreita, ambientada na Sicília durante o período de ascensão do fascismo. Elementos da tragédia grega se misturam ao fatalismo latino e ao modo Sergio Leone de fazer cinema numa realização pontuada de exageros. A apreciação a seguir é de 1985.






Amor e ciúme
Fatto di sangue fra due uomini per cause di una vedova: si sospettano movementi polici

Direção:
Lina Wertmüller
Produção:
Arrigo "Harry" Colombo
Harry Colombo Production, Incorporated Television Company (ITC), Liberty Film
Itália — 1978
Elenco:
Sophia Loren, Giancarlo Giannini, Marcello Mastroianni, Tuti Ferro, Mario Scarpetta, Antonella Murgia, Lucio Amelio, Maria Carrara, Isa Danieli, Guido Cerniglia, Vittorio Baratti, Oreste Radi e os não creditados Tomas Arana, Tito Palma.



A diretora Lina Wertmüller


Amor e ciúme  curta denominação para um título original quilométrico  é passo mal dado na carreira de Lina Wertmüller. A cineasta vinha, desde Mimi, o metalúrgico (Mimi metallurgico ferito nell'onore, 1972), despertando a atenção do cinéfilo, brindado em 1975 com Pasqualino Sete Belezas (Pasqualino Settebellezze) — seguramente, o ponto alto de sua filmografia. Dois na cama numa noite de chuva (La fine del mondo nel nostro solito letto in una notte piena de pioggia, 1977  mais um dos seus muitos títulos verborrágicos), continuaria justificando o interesse. Infelizmente, não soube administrar a irresistível compulsão ao exagero com Amor e ciúme. Perdeu a mão até na direção de atores, quesito no qual sempre mereceu admiração.


Sophia Loren - desglamourizada - como a ensandecida Concetta "Titina" Paterno

  
Amor e ciúme concentra a ação na Sicília no começo dos anos 20. O fascismo estava em ascensão. No centro da trama está a viúva Concetta "Titina" Paterno (Loren) às voltas com quatro homens: o fantasma do marido assassinado, Angelo Paterno (Giannini); o odiado assassino fascista Vito Acicatena (Ferro); o advogado socialista Rosario Maria Spallone (Mastroianni); e o gângster Nicolucho Sanmichelle Paterno (Giannini), irmão de Angelo.


Rosario Maria Spallone (Marcello Mastroianni) e...
 
...Nicolucho Sanmichelle Paterno (Giancarlo Giannini) são os homens interessados em Concetta. Giannini também interpreta o marido assassinado da personagem vivida por Sophia Loren: Angelo Paterno


Amor e ciúme é a décima parceria Sophia Loren-Marcello Mastroianni, vista pela primeira vez em Bela e canalha (Peccato che sia una canaglia, 1954), de Alessandro Blasetti. A dupla — uma das mais carismáticas do cinema — está irreconhecível vinte e quatro anos depois.


Loren, totalmente desglamourizada, carregada de maquiagem e mais morena que o habitual, exibe enormes olheiras. A personagem é forte. Camponesa sofrida, testemunhou de perto o assassinato do marido, quando também perdeu o filho prestes a nascer. o matador Acicatena agiu a mando de um potentado rural. Julgado, foi absolvido. Inconformada, Concetta vaga qual fantasma enlouquecido: denuncia a injustiça e assusta a todos com as imprecações lançadas ao léu. Ganha a vida comercializando carvão e praticando abordos clandestinos.


Rosario Spallone é socialista sem convicção. Aliou-se à esquerda apenas para provocar o pai aristocrata. Retorna à terra natal após dez anos. Apaixona-se à primeira vista pela viúva Paterno. Para conhecê-la, oferece-lhe aconselhamento jurídico. Entoa loas à justiça do socialismo para, ao fim, declarar o amor. Não é correspondido. Concetta não nutre simpatias pelo pretendente. Não imagina o que seja socialismo e perdeu a confiança em qualquer justiça. Só deseja a vingança. Não quer saber de amor, ainda mais de Spallone. Considera-o um falastrão desprezível devido à origem social e pela atitude "covarde" de cair no mundo após engravidar a pobre coitada interpretada por Antonella Murgia. Mastroianni, apagadíssimo, atua sonolento o tempo todo. Ostenta longa barba ao estilo Aleksander Soljenitsyn, tão absurda quanto cômica.


Rosario Maria Spallone (Marcello Mastroianni) é um socialista sem convicção

O gângster Nicolucho Sanmichelle Paterno (Giancarlo Giannini) fez carreira nos Estados Unidos da América


Spallone cai nas boas graças de Concetta após salvá-la, desastradamente, de ser estuprada por Cicatena. Mas é violentamente surrado pelo agressor. Ferido, é amparado pela viúva. Aproveita a oportunidade para forçar aproximação maior. Consegue roubar um beijo e, aparentemente, despertar o desejo reprimido de Concetta. Porém, ela age pragmaticamente e lança tudo na vala do esquecimento.


 Concetta "Titina" Paterno (Sophia Loren) e Rosario Maria Spallone (Marcello Mastroianni)

  
O intérprete preferido de Lina Wertmüller, Giancarlo Giannini, incorpora a Nicolucho trejeitos do personagem que viveu em Pasqualino Sete Belezas. Explorado durante a infância nas minas de salitre, migrou para os Estados Unidos onde se impôs pela força das armas. É autor confesso de 25 mortes — preço pago para fazer jus a uma fatia do sonho americano. De volta à Sicília, quer vingar a morte do irmão. Apaixona-se pela cunhada. Pretende levá-la para a América. Desperta a atenção de todos com seus modos americanizados e pela distribuição de dinheiro a torto e a direito. Presenteia a cidade com nova imagem da Madonna. Jogador experiente e ousado, impressiona a nata do clube local, inclusive Spallone — a quem humilha.


Nicolucho e Spallone disputam o amor de Concetta. Astuta e caprichosa, ela joga com os dois. Engravida, mas não revela o nome do pai.


 Concetta "Titina" Paterno (Sophia Loren) e Rosario Maria Spallone (Marcello Mastroianni)


Os acontecimentos se atropelam. Emboscado por fascistas liderados por Acicatena, Spallone é espancado e obrigado a ingerir óleo de rícino. Sofre a humilhação de uma diarreia monumental e pública. Procura vingança. Termina por atrapalhar o "acerto de contas" de Nicolucho. Este — temeroso com a reação descontrolada dos "camisas negras" — apressa o retorno aos EUA, fazendo-se acompanhar por Concetta e Spallone — acredita que o rival é o pai do filho da cunhada. Mas são surpreendidos pelos fascistas. Os dois homens tombam mortos. Porém, o revólver do gângster sobra para Concetta. A chance não é desperdiçada. Acicatena é abatido. A última cena mostra a viúva entre os rostos daqueles que a amaram.


Concetta "Titina" Paterno (Sophia Loren) com o marido Angelo Paterno (Giancarlo Giannini)

  
Amor e cíume mistura influências da tragédia grega com o fatalismo latino. A tudo isso junta, no plano estético, o modo Sérgio Leone de fazer cinema. Do diretor de Era uma vez no Oeste (C'era una volta il west, 1968) Wertmüller empresta a ação carregada de tonalidades barrocas e primeiros planos que aproximam por demais os semblantes dos personagens. Mas tudo é muito pouco para sustentar a história, propositalmente carregada de exageros pouco substantivos e tão displicentemente narrada.





Apresentação e produção executiva: Lord Lew Grade. Roteiro: Lina Wertmüller. Direção de arte: Enrico Job. Decoração: Gianni Giovagnoni. Figurinos: Benito Persico. Supervisão de produção: Gino Millozza, Guglielmo Del Vecchio, Enzo Nigro. Direção de fotografia (Technospes): Tonino Delli Colli. Montagem: Franco Fraticelli. Música: Pino Dangio De Luca, Nando De Luca. Maquiagem: Cesare Paciotti, Michele Trimarchi. Penteados: Nicla Pertosa Palombi. Primeiro assistente de direção: Gianni Arduini. Segundos assistentes de direção: Salvatore Palma, Mario Scarpetta. Assistente de direção de arte: Gianni Giovagnoni. Engenharia de som: Mario Bramonti. Ruídos de sala: Italo Cameracanna. Edição de efeitos sonoros: Italo Cameracanna. Operador de boom: Giuseppe Muratori. Segundo assistente de câmera: Sandro Battaglia. Primeiros assistentes de câmera: Giuseppe Buonaurio, Romolo Eucalitto. Assistente de câmera: Augusto Michisanti. Eletricista-chefe: Giuliano Michisanti. Operador de câmera: Carlo Tafani. Assistente de figurinos: Rosanna Andreoni. Assistentes de montagem: Pierluigi Leonardi, Luigi Zitta. Direção musical: Nando De Luca. Contabilidade: Alberto De Stefani. Armeiro: Arnaldo Dell'Acqua. Continuidade: Franca Santi Invernizzi. Estúdios de filmagem: De Paolis I.N.C.I.R. Companhia de figurinos: GPH Rome. Perucas: Rocchetti-Carboni. Tempo de exibição: 112 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1985)