terça-feira, 24 de novembro de 2015

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE "O CÉU MANDOU ALGUÉM", DE JOHN FORD

No western de John Ford, o Natal, logicamente, significa redenção e autossacrifício, como comprova o simples, comovente e plasticamente belo O céu mandou alguém (3 godfathers, 1948) — segunda experiência do diretor com a cor. A primeira, de 1939, é Ao rufar dos tambores (Drums along the Mohawk).







John Ford


A direção de fotografia aos cuidados de Winton C. Hoch é um dos trunfos de O céu mandou alguém. A respeito, tento relembrar as exatas palavras utilizadas por Sérgio Augusto em matéria dedicada ao título, publicada em alguma edição da revista Isto É do começo dos anos 80. Sempre atento ao significado a extrair do visual de seus filmes, Ford pedia a Hoch: "Faça como Remington" — Frederick Sackrider Remington, pintor, ilustrador e escritor especializado na descrição de temas relacionados ao Oeste dos Estados Unidos no terço final do século 19. "E Remington fazia". Além de O céu mandou alguém, Hoch é responsável pelas imagens de outras três obras da fordiana, os também coloridos Legião invencível (She wore a yellow ribbon, 1949), Depois do vendaval (The quiet man, 1952) e Rastros de ódio (The searchers, 1956). Pelo sabido, também manteve fidelidade à ótica remingtoniana nas realização de 1949 e 1956.


O céu mandou alguém é refilmagem do igualmente fordiano Homens marcados (Marked men, 1919), um dos muitos trabalhos perdidos da fase inicial da carreira do diretor. Protagonizam-no Harry Carey, Joe Harris e Ted Brooks. Com algumas modificações, Ford retomou a história em 1921, em outra obra desaparecida: Ação enérgica (Action). São realizações extraídas da novela de sucesso The three godfathers, de Peter B. Kyne, publicada em 1913. Foi levada às telas por Edward J. Le Saint — The three godfathers (1916) —, Wylliam Wyler — Os três padrinhos (Hell's heroes, 1929) —, Richard Boleslawski — Três padrinhos (Three godfathers, 1936) — e John Badhan — O afilhado (The godchild, 1974), realizado para a TV. O mais recente Tokyo godfathers (2003), animação japonesa a cargo de Satoshi Kon e Shôgo Furuya, é livremente inspirado no texto de Peter B. Kyne.


Cartaz do desaparecido Homens marcados (Marked men), dirigido por Ford em 1919



Publicidade para Ação enérgica (Action, 1921), outro filme perdido de John Ford


Além da redenção e do autossacrifício, O céu mandou alguém exalta a camaradagem e, complementarmente, a amizade — temas caríssimos ao cinema de Ford. A história é desenvolvida como um conto moral desenrolado sobre o pano de fundo da adversidade. Diante de momento extremo, a exigir rápida tomada de decisão, os personagens são postos à prova. No limite, revelam-se maiores e melhores do que aparentam ser.


Nas vésperas de Natal os fora da lei Robert Marmaduke Sangster Hightower (John Wayne), Pedro Roca Fuerte (Pedro Armendáriz) e William "The Abilene Kid" Kearney (Harry Carey Jr.) escapam após assalto a banco. Não enfrentam boas condições. Kearney está ferido, o estoque de água se perdeu e são perseguidos pela patrulha liderada pelo xerife Perley "Buck" Sweet (Ward Bond). As vias à fuga foram bloqueadas e o trio não tem como se abastecer. Resta a opção de enfrentar a aridez do deserto. O ferimento de Kearney infecciona; os cavalos são extraviados durante tempestade de areia. Quando tudo parecia perdido, as trampas do destino acodem os fugitivos, transformando-os em peregrinos ou improváveis alegorias dos Reis Magos. Encontram um carroção coberto abandonado. Em seu interior, bastante exaurida, uma grávida (Mildred Natwick) solitária está para dar à luz. O marido inexperiente pereceu no deserto, tentando encontrar água. O que fazer?


Harry Carey Jr., John Wayne e Pedro Armendáriz nos respectivos papéis de William Kearney, Robert Marmaduke Sangster Hightower e Pedro Roca Fuerte



A mãe moribunda (Mildred Natwick) e o assustado Robert Hightower (John Wayne)


Ora, é Natal e três homens desesperados estão diante da maior e inesperada provação de suas vidas. Graças a eles nasce a criança. A mãe, aliviada, falece após batizá-la com partes dos nomes dos três parteiros elevados à condição de padrinhos: Robert William Pedro. Agora, devem salvá-la, conforme juraram à moribunda. Há leite em pó entre os provimentos. Com lentidão e dificuldade extraem água dos cactos em volta. Nova Jerusalém, cidade mais próxima, é a meta a atingir. Será alcançada ao custo de penosa caminhada, com o xerife no encalço. Porém, a luz da redenção, emitida por estrela como a de Belém, foi anunciada desde o início do filme. Guiará e acolherá os novos peregrinos como representação que rende homenagem ao protagonista de Homens marcados, a quem Ford, generoso, dedica O céu mandou alguém: "À memória de Harry Carey, estrela brilhante no jovem céu do Oeste".


O tom de elegia de um momento tipicamente fordiano: os três padrinhos na sepultura da mãe



Os três padrinhos a caminho de Nova Jerusalém



Rodado em 32 dias, O céu mandou alguém tem exteriores obtidos em locações californianas: Parque Nacional do Vale da Morte, Deserto de Mojave, Estrada de Ferro Carson-Colorado em Owens Valley, Alabama Hills, Lone Pine, e RKO Encino Ranch. As armadilhas sentimentais que sempre cercam histórias semelhantes, às vezes arrastando-as à pieguice, foram sabiamente evitadas por Ford, graças ao seu habitual senso de humor — fundamental para temperar momentos dramaticamente mais carregados e humanizar os personagens. É impagável a cena na qual untam o recém-nascido com graxa de roda de carroça, diante da falta de creme protetor para a pele. Também é cômico ver Robert Hightower embalar a criança, sentado em uma cadeirinha. John Wayne, com expressão tão desolada e desconfortável, passa a impressão de ser motivo de troça para o mundo inteiro. 


John Wayne como o desconfortável padrinho Robert Hightower ladeado pelos companheiros Pedro Roca Fuerte (Pedro Armendáriz) e William Kearney (Harry Carey Jr.)






(José Eugenio Guimarães, 1982)

domingo, 22 de novembro de 2015

PONTECORVO EM EXEMPLAR AJUSTE DE CONTAS COM A "CIVILIZAÇÃO" E O COLONIALISMO

Obviamente, A batalha de Argel (La battaglia di Algeri/La bataille d'Argel/Maarakat Alger, 1966) teve exibição proibida na França. No Brasil, a interdição durou 14 anos. Muitas imagens são tristemente familiares aos brasileiros que vivenciaram da pior forma a ditadura militar. Com narrativa em tom semidocumental, a realização de Gillo Pontecorvo mira principalmente o ano de 1957. A população e a Frente de Libertação Nacional ampliam as ações em prol da independência da Argélia. A França — potência colonizadora, bastião do Iluminismo e da civilização ocidental — fez de tudo para manter a dominação. Sai do filme — e da história — ensanguentada, com a reputação seriamente abalada. Passados quase 50 anos, A batalha de Argel ainda preserva a atualidade. Em linguagem crua e explosiva, alimentada por tomadas curtas e precisas, apreende a respiração tensa e dramática do agente coletivo — a população de Argel — que suportou o impacto da repressão e saiu às ruas para defender o direito à autodeterminação. Pontecorvo não demoniza franceses nem idealiza insurgentes. A responsabilidade pelos excessos recai sobre o sistema de exploração colonial — julgado nos planos moral, político e histórico. Em 2005 A batalha de Argel teve exibição no Pentágono, com o objetivo de mostrar aos oficiais estadunidenses envolvidos na Guerra do Iraque os erros cometidos pelos franceses. Uns e outros, pelo visto, nada aprenderam. A apreciação a seguir é de 1987.







A batalha de Argel
La battaglia di Algeri/La bataille d'Argel/Maarakat Alger

Direção:
Gillo Pontecorvo
Produção:
Antonio Musu, Yacef Saadi
Igor Film (Roma), Casbah Film(Argel)
Itália, Argélia — 1965
Elenco:
Jean Martin, Samia Kerbash, Yacef Saadi, Brahim Haggiag, Fusia El Kader, Mohammed Ben Kassen, Ugo Paletti, Omar e os não creditados Michéle Kerbash, Franco Moruzzi, Tommaso Neri, Gene Wesson.



Gillo Pontecorvo no tempo das filmagens de A batalha de Argel



Herdeiro do Neorrealismo, o cinema de conotações políticas manteve, principalmente nos anos 60 e 70, forte tradição na produção da Itália. Diretores da linha de frente como Elio Petri — A classe operária vai ao paraíso (La classe operaia va in paradiso, 1971), Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita (Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto, 1970), Juízo final (Todo modo, 1976) —, Francesco Rosi — O bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, 1962), O caso Mattei (Il caso Mattei, 1972), Cadáveres ilustres (Cadaveri eccellenti, 1976), Três irmãos (Tre fratelli, 1982), Cristo si è fermato a Eboli (1979) —, Damiano Damiani — Confissões de um comissário de polícia ao procurador da república (Confessione di un commissario di polizia al procuratore della repubblica, 1971) —, Giuliano Montaldo — Sacco e Vanzetti (Sacco e Vanzetti, 1971) —, Carlo Lizzani — Il processo di Verona (1963), Sequestrados (Barbagia, 1969) — entre outros, confirmam esse enraizamento. A eles se junta o bissexto Gillo Pontecorvo, mais conhecido por Queimada (Queimada, 1969) — sobre as manobras do colonialismo na América Latina —, durante longo tempo esquecido no freezer do brasileiro Departamento de Censura da Polícia Federal até ser liberado à exibição em 1980.


Quatro anos antes de Queimada o diretor já mirava o colonialismo e seus efeitos no surpreendente e impactante misto de ficção e documentário A batalha de Argel. Este também não contou com o beneplácito dos zelosos funcionários da censura no Brasil. Os fatos em tela compreendem o período entre 1954 e 1962. Mas a ação é concentrada em 1957. Mostra a luta da Frente de Libertação Nacional (FLN) em prol da independência da Argélia — há 130 anos ocupada — e a reação ao movimento por parte do governo da República Francesa, a potência colonizadora. No Brasil, a realização só foi liberada em 1982 — coincidentemente, o ano em que o país do norte da África completava 20 anos de independência. Os censores patrícios ficaram nitidamente incomodados diante das torturas aplicadas pelos paraquedistas do Coronel Mathieu (Martin) aos prisioneiros da FLN. O indefensável banimento das nossas telas tinha motivos mais que evidentes. Logo no começo se instala pronta identificação entre a situação da Argélia subjugada pelos franceses e o Brasil sob o tacão da ditadura militar. As imagens dos créditos de abertura são muito familiares aos brasileiros que testemunharam a escalada do arbítrio e da violência institucionalizada, principalmente as cenas em que inúmeros soldados desembarcam de caminhões para cercar e esquadrinhar a Casbah em busca do líder guerrilheiro Ali La Pointe (Haggiag).




Acima, ao centro e abaixo: o guerrilheiro Ali La Pointe (Brahim Haggiag)


Apesar do lançamento tardio nas telas brasileiras, A batalha de Argel guarda o frescor da atualidade. Resiste bravamente à ação do tempo. Pontecorvo se vale de linguagem crua, de permanente impacto, próxima do Neorrealismo que formou cineastas como Rossellini, Visconti e De Sica: imagens cruas, registradas em preto e branco por câmera nervosa, quase sempre na mão e em constante movimento, na execução de tomadas curtas; filmagens nas ruas, nos mesmos locais em que ocorreram os fatos dramatizados; atores não profissionais; utilização dramática de rostos, expressões e gestos da gente do povo em cenas tão pungentes que dispensam qualquer linha de diálogo. Os moradores de Argel reconstituem a própria história que protagonizaram pouco antes. O produtor associado e ator Yacef Saadi — intérprete de Djafar — revive seu próprio papel. Foi um dos organizadores da resistência popular final, quando os moradores da Casbah tomaram literalmente de assalto a parte europeia de Argel; uma multidão sem fim, como é mostrado.


Pontecorvo reencena os acontecimentos sob o ponto de vista do líder Ali La Pointe, mas não se compromete com personagens individuais. Interessa-lhe, antes de tudo, apreender a formação de um sangrento processo histórico para avaliar a trajetória final de todo colonialismo. Se da parte argelina são enfocados os líderes do movimento de libertação, não é sobre eles que recai a atenção do diretor. O foco da mirada de Pontecorvo é a personalidade coletiva, a gente do povo que sentiu na pele os efeitos da repressão e participou intensa e ativamente das lutas pela independência, como no culminante momento da greve geral e na sequência de encerramento. Se o filme possui um personagem individual de pronto destacado, este é o Coronel Mathieu — herói da resistência francesa ao nazismo e explícita personificação do espírito e mentalidade colonialistas. Emite juízos implacáveis que resumem a pronta e brutal intervenção francesa: "Os argelinos não querem os franceses e os franceses não querem sair da Argélia. Quem quer que a Argélia continue francesa deve aguentar as consequências" — afirma aos jornalistas, de pronto justificando os métodos que aplicará nos interrogatórios. Ao entrar em cena, Mathieu diz a que veio, em alto e bom som, ao comparar, sem meias palavras, a tênia e a FLN: ambas só morrem quando suas cabeças são esmagadas.


O foco da mirada de A batalha de  Argel é o povo, o agente coletivo


O Coronel Mathieu (Jean Martin) comanda a repressão aos insurgentes


A tortura

  
Pontecorvo não esconde a simpatia à causa argelina, mas evita a adesão incondicional e acrítica. Mostra as atrocidades dos franceses, sem deixar de registrar os excessos cometidos pelos guerrilheiros, principalmente quando a população civil, europeia ou nativa, é a vítima das ações indiscriminadas e furiosas de ambos os lados. Não foram apenas os homens do Coronel Mathieu que cometeram atos brutais e covardes. Pontecorvo não deixa dúvidas quanto a isso, mas evita o recurso fácil de responsabilizar diretamente qualquer um dos lados em pugna. O grande responsável pelo curso que a situação tomou é evidente: o sistema colonial e a vocação à exploração, por pretensos civilizados, de uma população sufocada e percebida pelo viés simplificador e preconceituoso da barbárie. A França, pioneira e campeã das causas da cidadania e dos direitos humanos, sai do filme com a reputação seriamente abalada. Até hoje o desfecho da questão argelina soa mal aos franceses, da mesma forma como o Regime de Vichy, o colaboracionismo com o invasor nazista, a Indochina, o Caso Dreyffus e o antissemitismo.


Pontecorvo evita a todo custo recursos que lançam mão de didatismos, idealizações românticas e sentimentalismo. As imagens são secas e cortantes, ásperas e ágeis, no tom de um tenso registro do melhor jornalismo praticado no calor da hora. Os acontecimentos são encenados na forma de uma jornada empolgante, angustiante e violenta. Os dados da ficção acrescentados cumprem a função de humanizar a história. Ao mesmo tempo, conferem eletrizante e absorvente unidade narrativa ao relato, próxima do thriller, que a todo instante prende a atenção.


Ali La Pointe (Haggiag) e o gendarme

  
Ao lado das imagens desempenha nítida função dramática a música composta por Enio Morricone e Gillo Pontecorvo, conduzida por Bruno Nicola, principalmente nos momentos finais, quando se ouve um constante matraquear que acompanha o ritmo da movimentação dos becos e vielas, ladeiras e escadarias da Casbah.


A resistência popular em A batalha de Argel


A batalha de Argel recebeu o Leão de Ouro de São Marcos no Festival de Veneza de 1966. No mesmo ano conquistou os prêmios da Crítica Internacional, do Circoli del Cinema Cittá di Imola e o Cittá di Venezia.





História: Franco Solinas. Roteiro: Franco Solinas, Gillo Pontecorvo. Desenho de produção e decoração: Sergio Canevari. Montagem: Mario Serandrei, Mario Morra. Direção de fotografia (preto e branco): Marcello Gatti. Música: Enio Morricone, Gillo Pontecorvo. Direção Musical: Bruno Nicola. Diretor de segunda unidade: Giuliano Montaldo. Assistente de direção: Fernando Morandi. Costumes e guarda-roupa: Giovanni Axerio (não creditado). Auxiliar de câmara: Moussa Haddad. Assistentes de montagem: Anna Maria Montanari, Lina Caterini. Chefe de trucagens: Maurizio Giustini. Diretor de produção: Sergio Merolle, Nour Eddine Brahimi. Colaborador do diretor de produção: Noureddine Brahimi. Inspetores de produção: Rolando Pieri, Lakhdar-Toumi Edini, Abdenour Essed, Mohamed Hadj Smaïn (não creditado). Produção executiva: Fred Baker (não creditado). Secretário de produção e continuidade: Alfredo di Santo. Produtor associado: Yacef Saadi. Operador de segunda unidade: Claudio Racca. Operador de câmera: Silvano Mancini. Assistentes de câmera: Belkacen Bazi, Ali Maroc, Alfredo Marchetti. Técnico de som: Omar Bouksani. Sincronização: Alberto Bartolomei. Assistente de montagem: Linc Caterini. Maquiagem: Maurizio Giustini. Penteados: Hamdi Mohamed. Segundo assistente de direção: Moussa Haddad. Coordenação de construções: Tarcisio Diamanti (não creditado). Efeitos especiais: Aldo Gasparri (não creditado). Eletricista-chefe: Nazzareno Belardinelli. Publicidade: Margherita Autuori (Rossetti), Enrico Lucherini, Matteo Spinola. Administração da produção: Mario Maestrelli. Construções: Tarcisio Diamanti. Fotografia de cena: Apot Press-Roma, Casbah Films-Algeri. Edição musical: RCA italiana, CAM SPA‑Roma. Registro musical: RCA italiana. Canção: Je m'en fiche, de De Lucia, interpretada por Miranda Martino. Produção do trailer: Warmflash Productions Ltd. Tempo de exibição: 135 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1987)