domingo, 14 de junho de 2015

A MISTIFICAÇÃO DE ERICH VON DÄNIKEN ADAPTADA POR HARALD REINL

Os fãs de Giorgio A. Tsoukalos e do programa que leva ao ar pelo canal de assinatura History Channel, Alienígenas do passado (Ancient aliens), são, certamente, leitores apaixonados dos livros de mistificação e vulgarização do suíço Erich von Däniken: Eram os deuses astronautas?, De volta às estrelas, O dia em que os deuses chegaram: 11 de agosto de 3114 a.C., A história está errada, O retorno dos deuses etc. O escritor defende a tese de que a herança inteligente da humanidade decorre do contato de nossos ancestrais de épocas imemoriais com viajantes vindos das vastas regiões estelares. Ficaram conhecidos como deuses e originaram os mais diversos cultos e crenças religiosas. Em 1970 o cineasta austro-húngaro Harald Reinl — um dos principais nomes do cinema popular alemão, responsável por transformar em filmes obras de Karl May protagonizadas pelo guerreiro Winnetou — adaptou às telas, como documentário, as primeiras teses de Däniken. O resultado é Eram os deuses astronautas? (Erinnerungen an die zukunft), apoiado num didatismo à base de perguntas e afirmações ao gosto dos ouvintes mais empedernidos da velha Rádio Relógio Federal. Os aficionados que me perdoem, mas... A apreciação a seguir, de 1974, passou por alguns ajustes quinze anos depois.






Eram os deuses astronautas?
Erinnerungen an die zukunft

Direção:
Harald Reinl
Produção:
Terra-Filmkunst GmbH
República Federal da Alemanha — 1970
Elenco:
Participam: Heinz-Detlev Bock (narrador), Klaus Kindler (narrador), Christian Marschall (narrador), Hans Domnick, Thor Heyerdahl, Aleksandr Kazantsev, Hermann Oberth, Erich von Däniken.



O cineasta austro-húngaro Harald Reinl com a atriz alemã Karin Dor



Harald Reinl endossa literalmente as teses de Erich von Däniken, autor dos livros Eram os deuses astronautas? (Erinnerungen an die zukunft) e De volta às estrelas (Zurück zu den sternen)[1], e assina este documentário tão frágil como a Teoria Difusionista que o embasa. Com ardor religioso, diretor e autor sustentam: a Terra, em eras imemoriais, serviu de porto privilegiado a seres de outras galáxias que aqui deixaram marcas ainda intactas. Esses viajantes, intimamente chamados tanto nos livros como no filme de astronautas e viajantes das estrelas, ganharam dos habitantes do planeta, com os quais entraram em contato, o status de deuses. Desses encontros  sustentam Däniken e Reinl  surgiram as mais diversas formas de culto e adoração religiosa.


A tese, risível, é apoiada em argumentação simplória. Para fundamentá-la a realização apresenta uma tribo da Polinésia. A comunidade, que ainda parece viver no paleolítico, jamais vira um avião até a Segunda Guerra Mundial, quando suas terras foram transformadas em campo de pouso para a força aérea estadunidense em guerra com o Japão. Findo o conflito, os aparelhos retornaram às bases. Nunca mais foram vistos pelos nativos. Passado algum tempo, iniciaram novo culto materializado por plataforma improvisada em pista de aterrissagem. Na extremidade da instalação esculpiram em madeira e palha a réplica de um avião. Junto à representação os polinésios passaram a se revezar, dia e noite, em interminável vigília, no aguardo ao retorno dos deuses alados. Esse fato, que pode muito bem ilustrar um caso particular, é generalizado imprudentemente para os agrupamentos humanos de todo o mundo, das mais diversas épocas.




Acima, ao centro e abaixo: o mistificador e vulgarizador suíço Erich von Däniken

  
Daí se conclui que as torres e pináculos que invariavelmente existem em templos e palácios  formas que parecem “simbolizar uma viagem aos céus”, conforme a narração  foram construídos com o claro objetivo de atrair os deuses e estes seriam “astronautas” extraterrestres. E afloram os disparates. Na Grécia, o terreno que serve de base a um monumento da arquitetura clássica foi, devido ao seu formato, provavelmente usado para decolagem de naves espaciais, argumenta sem pudor a realização. Motivos celestes e alados de antigas gravuras e ilustrações são, de maneira forçada, comparados a pilotos de naves espaciais que teriam prolongamento lógico e natural em nossos astronautas. Em encosta do litoral sul do Peru, estranho e gigantesco sinal aponta para o Platô de Nasca, no interior do país, em cujo solo afloram desenhos em alta escala semelhantes a águias, aranhas etc. Essas formas só ganham sentido quando divisadas do alto. Diante disso, vem a pergunta: não seriam sinais para pilotos de espaçonaves? No mesmo local inúmeros traçados retos se prolongam em distâncias consideráveis, em todas as direções. Que finalidade teriam? A resposta: poderiam servir como pistas de aterrissagem. O filme interroga: quem desenhou a águia, a aranha e riscou os traçados retos? Ora, os deuses, os astronautas das galáxias que nos visitaram. Claro, Däniken e Reinl, só poderiam ser eles, não é mesmo? — concordam os espectadores boquiabertos, estupefatos e envergonhados, que só respondem positivamente para não prolongar o filme e acabar de vez com a tortura. Alguns, ao contrário do intransigente bonequinho que ilustra críticas cinematográficas de O Globo, jamais abandonam uma exibição no meio. Bem que deveriam! Eu que o diga!


A tese do filme: em épocas imemoriais viajantes estelares entraram em contato com os humanos e estes registraram suas marcas


As misteriosas linhas no platô de Nazca, Peru


Outro dos gigantescos traçados no solo do platô de Nazca


Em busca de traços que confirmem a tese, ou de pistas à “evidente” passagem de alienígenas na Terra, a produção faz um périplo por mais de 100 mil quilômetros através de cinco continentes. Visita 40 diferentes lugares no Egito, México, Bolívia, Índia, Iugoslávia, Iraque, Palestina, Turquia, Itália, Líbano, Saara, Ilha da Páscoa, Austrália, Japão, Rússia e Guatemala, além dos referidos Polinésia, Grécia e Peru. Mas o espectador não deve se iludir. Tanto a exposição como a argumentação estão a serviço da péssima vulgarização da mais duvidosa ciência. Alias, falar de ciência em se tratando de Erich von Däniken é brincadeira. O autor e seus seguidores se mostram, isso sim, partidários do misticismo. Constrangimento! Essa é a sensação que domina o incauto que cai na armadilha de assistir a Eram os deuses astronautas?.


Stonehenge, na Inglaterra, não poderia faltar às teses levantadas pelos filme



As bases para se compreender a argumentação de Däniken foram fornecidas no século 19, por Schliemann. Entretanto, esse arqueólogo que descobriu as ruínas de Troia não deve ser responsabilizado por nada. Porém, em busca de vestígios que comprovassem a existência da lendária cidade, considerou ao pé da letra os registros de Homero. Teve sorte. O problemático é ver Erich von Däniken se basear nesse exemplo para resolver alguns dos maiores mistérios da humanidade. Empreende leituras dogmáticas da Bíblia e de textos sacros das mais diversas religiões. Promove, consequentemente, o empobrecimento da História e das culturas. Da sua narrativa aflora um homem esvaziado, desprovido de autonomia diante das possibilidades oferecidas pelo mundo, descrente de suas capacidades. A produção humana e toda a linguagem se transformam em atributos de deuses, dos navegantes das estrelas que tomaram a frente de tudo. A humanidade nada fez, senão reverenciá-los da mesma maneira, com pequenas variações aqui e ali. Um dos maiores recursos da comunicação, a metáfora  presente em quase tudo a respeito dos deuses e do sagrado  não tem sentido algum para Däniken; da mesma forma, os contextos nos quais afloraram as mais diversas civilizações.


Ao longo dos 96 minutos de Eram os deuses astronautas? ouvem-se preciosidades dignas dos bons tempos da Rádio Relógio Federal, em forma de perguntas e afirmações. Algumas: há 50 milhões de estrelas na Via Láctea. Algumas teriam vida? Alguns habitantes das estrelas teriam nos visitado? Ainda neste século o homem irá pousar em Marte, depois Vênus. De que forma seremos recebidos? Como homens ou como deuses? A mão de Deus que destruiu Sodoma e Gomorra de um só golpe foi, na verdade, uma explosão atômica. A tampa da Arca da Aliança, de onde saía a voz de Deus, poderia ser muito bem um tipo de alto-falante. La Paz, a 3 mil metros acima do nível do mar, é a mais alta capital do mundo. O Lago Titicaca é o mais alto do mundo. Em Tihauanaco está o mais antigo santuário do mundo. As múmias foram copiadas de extraterrestres.



Eram os deuses astronautas?



Quando se detém no Egito, o filme tenta lançar luz sobre o mistério das pirâmides. A narração informa sobre Queops: área de 53 metros quadrados, peso de 6,5 milhões de toneladas (equivalente a 65 mil locomotivas), 137 metros de altura, 2,3 milhões de blocos de pedra empilhados, cada qual com 2,5 toneladas. Depois, pergunta: como foram transportados se não existiam guindastes nem caminhões? Se 20 mil operários levassem e assentassem dez blocos por dia seriam necessários 660 anos de construção. Quem transportou as pedras das pirâmides? Da mesma maneira, como foram projetadas as outras pirâmides, a esfinge e as tortuosas passagens que levavam ao interior das bem trabalhadas câmaras mortuárias do Vale dos Reis?


Ainda no Egito... Os monumentos de Luxor, construídos há mais de 3 mil anos, transferidos para local mais elevado na década de 50 quando da construção da represa de Assuam. No esforço para salvá-los da inundação, várias nações atenderam ao chamado da Unesco. As gigantescas peças foram retalhadas em 300 mil pedaços, transportados e montados com as facilidades permitidas pelos mais modernos equipamentos motomecânicos. Mesmo assim foram necessários três anos para completar a operação. Aí surge o narrador (coitado!) com questão que aponta para uma resposta fincada nos extraterrestres: como os egípcios agiram na época das construções se não dispunham dos meios técnicos atuais? Na Planície de Gize, no Vale dos Reis e em Luxor não havia as pesadas pedras que possibilitaram a construção dos monumentos. Foram transportadas de locais distantes. Como, como, como? — interroga o aborrecido filme. E o enorme obelisco inacabado de Assuam, impossível de ser movido por qualquer guindaste? Ora, Däniken e Reinl, sabe-se lá se os antigos egípcios pretendiam de fato movê-lo? Os mesmos mistérios do Nilo cercam as pirâmides que astecas e maias ergueram no México e na América Central, as gigantescas e silenciosas estátuas que miram o mar na Ilha da Páscoa, as muralhas e labirintos de Cuzco. Quem fez tudo isso? Os deuses astronautas; foram eles. Quem mais poderia ser? Däniken e Reinl, vão dormir homens de Deus. Nós também queremos. Ai, ai, ai! Que filminho pretensioso!





Roteiro: Harald Reinl, baseado nos livros Eram os deuses astronautas? (Erinnerungen an die zukunft) e De volta às estrelas (Zurück zu den sternen), de Erich von Däniken, com comentários de Utz Utermann — creditado como Wilhelm Roggersdorf. Direção de fotografia (Eastmancolor): Ernst Wild. Operadores de câmera da segunda unidade: Claus Riedel, Richard R. Rimmel. Montagem: Hermann Haller. Música: Wilhelm Roggersdorf, Peter Thomas. Narrador: Wilhelm Poggersdorf. Texto da narração: Heins-Detlev Bock, Klaus Kindler, Christian Marschall. Assistente de direção: Charles M. Wakefield. Assistente de câmera: Ernst Stritzinger. Fotografia de cena: Timm Klose. Assistentes de montagem: Jutta Neumann, Verena Dauelsberg. Produção executiva: Manfred Barthel, Günther Eulau. Coprodução: John C. Mahon. Gerente de unidade de produção: Franz Achter. Gerente de produção: Konstantin Thoeren. Agradecimentos da produção: Hans Domnick, Thor Heyerdahl, Alexander Kasantsew, Professor Hermann Oberth, Messrs. G. Rodenstock, Wiatscheslav Saitsew. Tempo de exibição: 96 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1974; revisto e ampliado em 1989)




[1] Publicados no Brasil no começo da década de setenta pela Editora Melhoramentos.