domingo, 15 de junho de 2014

CORBUCCI INSTALA RINGO, O DA PISTOLA DE OURO, EM GOLDSTONE

Nem sempre fui simpático e condescendente com o western europeu. Abria exceção aos hipnóticos e estilísticos exercícios barrocos de Sergio Leone. Porém, minhas sessões dominicais, ao longo da segunda metade dos anos 60, foram, por falta de opção, povoadas de muitas horse operas procedentes da Itália, Espanha e Alemanha. Somente em meados da década de 70 o meu humor começou a se abrir às realizações de Enzo Barzoni, Sergio Sollima, Enzo G. Castellari, Harald Reinl, Duccio Tessari, Giulio Petroni e, entre outros, o competente e prolífico Sergio Corbucci, realizador do antológico Django (Django, 1966) e do desconcertante O vingador silencioso (Il grande silenzio, 1968). É de 1976 a apreciação que escrevi para Ringo e sua pistola de ouro (Johnny Oro, 1966). Apesar de já reconhecer o valor de Corbucci, ainda estava dominado pela má vontade na apreciação do filme, protagonizado por um amoral e galhofeiro caçador de recompensas. 







Ringo e sua pistola de ouro
Johnny Oro

Direção:
Sergio Corbucci
Produção:
Joseph Fryd
Sanson Film
Itália  1966
Elenco:
Mark Damon, Valeria Fabrizi, Franco Derosa, Giulia Rubini, Loris Loddi, Andrea Aureli, Pippo Starnazza, Ettore Manni, Nino Vingelli, John Bartha, Vittorio Williams Bonos, Bruno Scipioni, Silvana Bacci, Giulio Maculani, Giovanni Cianfriglia, Evaristo Signorini, Amerigo Gastrighella, Figlia Francesco, Ivan Basta, Lucio De Santis, Mauro Mannatrizio e os não creditados Fortunato Arena, Paolo Figlia, Alfonso Giganti, Ferdinando Poggi.



O diretor Sergio Corbucci entre os atores Eli Wallach, Tomas Milian e Giuliano Gemma
Bastidores de O último samurai do Oeste (Il bianco il giallo il nero, 1975)


Ringo e sua pistola de ouro é uma divertida e deliciosa realização — ainda que seja tão vagabunda quanto cretina — protagonizada por um pistoleiro amoral e galhofeiro. Se o espectador tiver um mínimo de senso crítico poderá assisti-la sem muito sofrimento e esforço. Não dá é para levá-la a sério, mesmo sabendo que é um dos melhores westerns spaghetti, concebido quando o gênero estava no auge em quantidade e qualidade de produção. O diretor Sergio Corbucci, expert do cinema popular italiano, aventurou-se por dramas, comédias, musicais, épicos de gladiadores e heróis musculosos, policiais, capa-e-espada e inúmeras reatualizações do gênero que André Bazin chamou de "americano por excelência". Popularizou pistoleiros fanfarrões, amorais e cínicos que atendem pelos nomes de Ringo, Django, Joe etc.


Ringo (Damon) é um eficiente caçador de recompensas. Vive de encontrar e liquidar pistoleiros com cabeças a prêmio. Seus serviços são regiamente pagos, de preferência em ouro. Leva na cintura reluzente revólver dourado, feito daquele mesmo metal. Depois de eliminar quase todos os Perez — família criminosa que assola a fronteira do México com os Estados Unidos —, ruma para Goldstone (só poderia ser esse o nome!), cidadezinha próxima guardada pelo xerife Bill (Manni).


Mark Damon como Ringo ou Johnny Oro segundo o original italiano

A credencial dourada de Ringo

  
Bill é intransigente no cumprimento da lei. A ponto de arriscar a vida dos cidadãos e da própria família. É um formalista, prisioneiro das próprias convicções, o equivalente a um completo idiota. Está prestes a partir para Boston acompanhado da mulher Jane (Rubini) e de Stan (Loddi), o filho criança. Aguarda apenas a chegada do substituto. Mas esse é assassinado.


Bill proíbe o porte de armas em Goldstone. Ringo tem o revólver dourado apreendido tão logo chega. Mesmo assim, despacha para outro mundo, com bomba disfarçada em cantil, três homens de Juanito (De Rosa), o caçula dos Perez que pretende, a todo custo, vingar a morte dos irmãos. Por esse ato Ringo será preso. Mas antes que tal aconteça, cavalga rápido até Barrancas, México, para cobrar a recompensa pelo trio eliminado. No retorno é condenado a cinco dias de prisão, ocasião em que contrai amizade com Stan, que o idolatra.


Ringo/Johnny Oro (Mark Damon) e os efeitos de uma poderosa bomba disfarçada de cantil

Goldstone: o xerfie Bill (Ettore Manni), à direita, apreende a pistola de ouro de Ringo (Mark Damon)

  
Enquanto isso, do outro lado da fronteira, Juanito Perez se alia aos Apaches de Sebastian (Cianfriglia sob o pseudônimo de Ken Wood). Pretendem tomar Goldstone de assalto. O bandoleiro quer se vingar de Ringo e, acima de tudo, recuperar a fortuna roubada por um dos irmãos. Está escondida em algum ponto da cidade. Os índios, por sua vez, almejam retomar a terra da qual foram expulsos. Diante da iminência do ataque, Goldstone é abandonada pelos moradores. Para defendê-la ficam Bill — acompanhado da esposa e do filho —, Matt (Starnazza)  hóspede permanente da cadeia, personagem cômico da história  e Ringo  ainda prisioneiro. É libertado no auge do ataque. Logo encontra jeito para controlar a situação e trazer a paz dos cemitérios a Goldstone. Ou ao que resta dela, pois acaba mandando-a pelos ares, literalmente. Com Ringo não há dúvidas. É como alguns médicos que curam a doença eliminando o enfermo. Mas a ação não termina aí. Os índios e os bandidos estão mortos. Porém, sobra Juanito na posse de um refém precioso: Stan. Novamente o pistoleiro resolve a parada, exibindo toda a sua peculiar perícia.


Ringo/Johnny Oro (Mark Damon)

A pistola de ouro em ação


Algumas passagens de Ringo e sua pistola de ouro lembram clássicos famosos do melhor western estadunidense. Numa há Sebastian, em sua primeira aparição, bêbado e tumultuando um bar, até ser controlado pelo xerife Bill. Ora, Wyatt Earp, na pele de Henry Fonda, não fez praticamente o mesmo com um índio na Tombstone de Paixão dos fortes (My darling Clementine, 1946), de John Ford? Em outra há a covarde e mesquinha população de Goldstone: prefere abandonar a cidade e deixar a "batata quente" de defendê-la exclusivamente nas mãos do xerife. Essa situação remete o espectador à solidão de Will Kane (Gary Cooper) em Matar ou morrer (High noon, 1952), de Fred Zinnemann. Porém, Corbucci não pretendia reverenciar esses filmes exemplares, nem parodiá-los ou desmistificá-los. Seu objetivo foi o de ridicularizar o dogmático xerife. Bill só enxerga a si próprio e seu centro de valores. Não busca referências ao atos que pratica; jamais os contextualiza. Está muito distante dos conscienciosos Wyatt Earp e Will Kane das realizações mencionadas.


Final do filme: Ringo (Mark Damon) bota banca e ordem em Goldstone

  
Ao contrário dos heróis do western americano, Ringo não tem honra ou valores positivos a defender. Vive de matar e receber ouro por cabeças postas a prêmio. É amado por Margie (Fabrizi), sentimental garota do saloon que não passa, para ele, de um bibelô descartável. Tanto que não verte uma lágrima ao saber que ela morreu por sua causa. Ringo e sua pistola de ouro banaliza a vida e a violência. O protagonista, sempre trajado de negro, é a estupidez personalizada na forma da mais cretina autoconfiança. A narrativa, óbvia demais, é embalada pelos temas típicos do western spaghetti, indefectíveis e solenes baladas tiradas no assobio ou em acordes de violão, mas destituídas da genialidade de um Ennio Morricone. Mesmo assim, Sergio Corbucci mostra competência e eficiência na condução da narrativa. Não perde tempo; não enfeita; é direto; revela de imediato a que veio: fazer um filme para agrado de um público que também não espera nada de relevante, que pretende apenas se postar diante da tela durante alguns minutos para fazer a catarse da própria estupidez ou das frustrações acumuladas; em suma, extravasar os instintos mais baixos e perversos. Portanto, por mais cretino que seja o filme de Corbucci cumpre utilidade social. Ringo e sua pistola de ouro não possui a sutileza e o poder de atração pelo barroco de um Sergio Leone. Mas sendo tão vagabundo não deixa de ser divertido, uma diversão grotesca, convenhamos. Porém, querer algo melhor já seria demais.


Margie (Valeria Fabrizi) e Ringo/Johnny Oro (Mark Damon)


Ringo e sua pistola de ouro pertence a um período de franca produtividade de Sérgio Corbucci. No mesmo 1966 em que o realizou ele nos deu O homem que ri (L'uomo che ride), Django (Django) e Joe, o pistoleiro implacável (Navajo Joe). No ano seguinte retornaria com Os cruéis (I crudeli). De 1968 são Os violentos vão para o inferno (Il mercenario) e O vingador silencioso (Il grande silenzio). O especialista  O vingador de tombstone (Gli specialisti) vem à luz em 1969; Companheiros (Vamos a matar, compañeros) em 1970. Mas os melhores dessa safra são o antológico Django, realizado logo antes de Ringo e sua pistola de ouro, e o insólito e desconcertante O vingador silencioso.






Argumento e roteiro: Adriano Bolzoni, Franco Rossetti. Direção de fotografia (Eastmancolor): Riccardo Pallottini. Montagem: Otello Colangeli. Música e direção musical: Carlo Savina. Supervisão de produção: Franco Palaggi. Assistentes de direção: Ruggero Deodato, Gaetanino Fruscella. Continuidade: Amelia Zurlini. Operador de câmera: Luigi Filippo Carta. Assistentes de operador de câmera: Fernando Gallandt, Lanfranco Spadoni. Som: Alessandro Sarandrea. Penteados: Lina Cassini. Maquiagem: Gaspare Carboni. Guarda roupa feminino: Berenice Sparano, Marcella De Marchis. Direção de arte, decoração e figurinos: Carlo Simi. Gravação de som: C. D. S. Studios, Alessandro Sarandrea. Gerente de produção: Rolando Pieri. Assistentes de gerente de produção: Rodolfo Mecacci, Walter Zoi. Sistema de mixagem de som: Westrex Recording System. Estúdios de filmagem: Elios Studios. Treinador de lutas: Fernando Poggi. Tempo de exibição: 87 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1976)